Por Daniela Pinheiro
Sentado de pernas cruzadas num sofá na sala, enquanto acompanhava o cair da tarde pela ampla janela do seu apartamento que dá vista para uma colina do Pacaembu, Fernando Henrique Cardoso explicou como José Serra desistiu de ser candidato ao Planalto:
Ele queria sair, estava bem nas pesquisas, mas o Alckmin não recuava e ameaçava rachar o partido. Era um domingo, e na terça, algo assim, deveríamos bater o martelo. O Serra passou o fim de semana inteiro no telefone, vendo pesquisas e se encontrando com gente. Ele adora uma reunião, acho que é resquício do movimento estudantil. Na véspera, veio aqui, à noite, e ficou sentado ali, naquela poltrona. Eu e a Ruth aqui, neste sofá. Falei pouco, até porque ele fez a maioria das perguntas à Ruth. A conversa se arrastou, não acabava, e ele, cada vez mais angustiado, não decidia. Até que, meio em voz baixa, disse que sairia candidato.
Na manhã seguinte, Fernando Henrique falou ao telefone com o senador Tasso Jereissati, presidente do Partido da Social Democracia Brasileira, que lhe disse não ter tido nenhuma notícia do recém-candidato. "O tempo passou e, pouco antes do anúncio oficial, o Serra me ligou. Falou que tinha desistido, que já tinha avisado o Alckmin, e que não iria à cerimônia de anúncio do nome dele", contou o ex-presidente. "Aí ele ligou de novo, para falar que a Verônica, a filha dele, tinha achado errado avisar o Alckmin direto, que ele deveria ter ligado primeiro para o Tasso."
José Serra optou por concorrer ao governo de São Paulo num cenário no qual, segundo projeção do Datafolha, chegaria ao segundo turno na disputa pelo Planalto com oito pontos percentuais atrás de Luiz Inácio Lula da Silva. Nas simulações em que o candidato tucano era Geraldo Alckmin, o presidente seria reeleito já no primeiro turno.
Para explicar a desistência em 2006, um amigo de mais de duas décadas do governador paulista lembrou o poema "Se", no qual Rudyard Kipling indaga Se és capaz de arriscar numa única mão de cartas/ tudo quanto ganhaste em toda tua vida... "Pois bem", disse o amigo, "o Serra é um homem que não aposta sua carreira numa mão de cartas. Ele é diferente do Fernando Henrique, que pôs todas as suas fichas no Plano Real, e do Lula, que arriscou sua presidência numa política para os pobres."
O amigo contou ainda que "Serra sentiu o golpe de 2002, e não se lançou de novo porque não tinha certeza em qual chão estava pisando". Naquele ano, ele chegou ao segundo turno contra Lula, mas sua candidatura desmoronou bem antes. Entre outros motivos, porque Serra hesitou entre defender ou tomar distância do governo, àquela altura altamente impopular, de Fernando Henrique, no qual fora ministro. Tasso Jereissati, diante da impossibilidade de ser ele próprio o presidenciável do psdb, apoiou um adversário, Ciro Gomes, dividindo os tucanos nordestinos. E houve disputas entre seus dois marqueteiros, Nizan Guanaes e Nelson Biondi, que quiseram, de maneiras diferentes, recriar a sua imagem pública.
Quatro anos depois, ao sentar-se à mesa no restaurante Massimo, em São Paulo, para o jantar dos chefes do psdb para escolher o candidato do partido, Serra intuiu que aquela turma não era bem a sua - e seria derrotado outra vez se insistisse em concorrer. Estavam no jantar Aécio Neves, Tasso Jereissati e Fernando Henrique.
Numa pesquisa de agosto passado do Datafolha, Serra tinha 37% das intenções de votos e era seguido de longe por Dilma Rousseff, com 16%.
Ele cumpria o roteiro de candidato: viajava pelo Brasil, fora ao Nordeste comer buchada de bode, homenageara o sanfoneiro Luiz Gonzaga, articulava candidaturas de correligionários, trocava chamegos públicos com Aécio, evitava críticas ao presidente Lula e concentrava as ações do governo paulista em obras com data de inauguração marcada para as vésperas da eleição do próximo ano. Mas, ao contrário de Dilma Rousseff, Ciro Gomes e Marina Silva, ainda não decidira se concorrerá.
"Antes de decidir, ele ouve bastante gente, mas leva mais a sério as mulheres", explicou Fernando Henrique, agradecendo o café que a empregada lhe trouxera. "Como o Serra é muito competitivo, qualquer conversa dele com um homem tende a se tornar um embate. E com as mulheres ele acha que não tem competição."
O ex-presidente acha que essa característica vem da infância: "Parece que ele foi uma criança cercada de mulheres que o paparicavam. E é fato que a sua vida foi marcada pela interlocução feminina. A madre Cristina foi essencial na formação dele. Conversava bastante com a Maria da Conceição Tavares e a Liana Aureliano, sempre falou mais com a Ruth do que comigo - não reparou como ele ficou destruído quando a Ruth morreu? -, com a Marta Suplicy, com a Soninha, com a Cosette Alves, com a Verônica."
Vicencia Marin, uma senhora baixinha e espevitada de 63 anos, é uma das mulheres com quem Serra conviveu na infância.
Primos, filhos únicos, ele quatro anos mais velho do que ela, foram criados como irmãos. Para a família, eram Zé e Bidu.
"Preciso falar antes com o Zé", disse Bidu ao ouvir o pedido para entrevistá-la junto com sua mãe, Teresa. Uma semana depois, elas me receberam na portaria do prédio onde Bidu mora, no Jardim Paulista ("Desculpe, é dia de limpeza, não dá para subir"), sentaram lado a lado num sofá da recepção, e a prima anunciou: "O Zé me disse para ser espontânea e contar coisas da nossa família."
Na beira de completar 90 anos, Teresa é forte e se veste com apuro. Tem os mesmos olhos do sobrinho político, e fala dele com emoção e orgulho.
"A Serafina e o Francesco se casaram numa cerimônia linda, tocaram charamela, dançaram tarantela, ai, me arrepio só de lembrar", disse, com forte sotaque calabrês.
Um ano depois, nasceu José Serra.
A família morava na Mooca, o bairro dos imigrantes italianos, numa casa de apenas um quarto, que o filho dividiu com os pais até os 4 anos de idade, quando foi transferido para a sala.
Bidu e Zé passavam o dia na casa da avó materna, Carmela, calabresa nascida na Argentina, que foi a maior referência afetiva de Serra na infância.
No livro de entrevistas O Sonhador que Faz, no qual conta sua vida, ele diz da avó: "Conversávamos muito, trocávamos confidências. Oferecia-me um amor sem tutelas."
Na casa dela, ele almoçava, brincava e fazia tarefas escolares, cercado por tias e vizinhas, além de Serafina e Bidu. "Tudo o que ele queria a gente fazia: uma comida, uma brincadeira, um bolo", disse a tia Teresa, logo acrescentando: "Mas ele nunca impôs nada."
Quando Bidu tinha 5 anos, o primo Zé tomava-lhe as capitais do mundo. "Ele também me fez decorar o nome científico da Cibalena", contou.
"Até hoje me lembro: dimetilaminofenildimetilpirazolona.
E ele nem era hipocondríaco ainda."
Ao que a tia Teresa atalhou:
"Bidu, para! Ele não é hipocondríaco. Ele era precoce. Sempre foi um crânio."
A comida de Serafina e do filho era preparada em separado. Mãe e filho não comiam alho, cebola e pimentão. "Por isso, o Zé não come nada disso. Meu tio, pai dele, morreu de câncer no intestino; ele também nunca digeriu bem essas coisas. Tem o estômago como válvula de escape, somatiza tudo no estômago, sabia?", contou a prima.
"Bidu, para!", interrompeu tia Teresa. "Não é nada disso. Isso a mamãe sabe: era que ele não gostava e pronto."
Segundo elas, Serra era bonzinho em casa, barulhento na escola e briguento na rua. Bidu se lembrou da ocasião em que ele desafiou um professor, conhecido como "Porquinho", a resolver uma equação, e ele não conseguiu.
"O Zé sabia mais que os professores. Uma vez, ele disse que o livro estava errado, e estava mesmo! Ai, dá até vontade de chorar", disse Bidu. Seu rosto enrubesceu e lágrimas borraram a maquiagem.
Aos 11 anos, Serra e os pais se mudaram para uma casa, onde o menino teve um quarto só para ele e o que mais queria: uma escrivaninha.
A ex-inquilina, uma cigana contrariada por ter que deixar a casa, contou Bidu, rogou uma praga para a nova proprietária.
"Ela disse: 'Você nunca vai ter sorte nessa casa.' E minha tia Serafina depois tropeçou, caiu, quebrou o pé num degrauzinho e a vida dela nunca mais foi a mesma. Foram seis meses engessada, um ano de cama e cirurgias até o fim da vida."
Chegara a hora de Serra retribuir o afeto feminino. "Você não imagina o carinho do Zé com ela", disse Bidu, novamente derramando lágrimas. "Era minha avó com hérnias horríveis, minha tia engessada, e ele ao lado da cama o tempo inteiro, fazendo tudo para elas."
Tia Teresa fez coro nas lágrimas e elogios: "Ele é assim: ajuda todo mundo. Em doença, então, nem se fala. Compra tudo com dinheiro dele. Mas emprego, ele não dá não."
Francesco quis que o filho o ajudasse no Mercado Municipal da Cantareira, onde tinha uma barraca de frutas, mas Serafina insistiu para que ele só estudasse.
A relação entre pai e filho era "distante e fria", nas palavras de Bidu. "Ele era imigrante, meio rígido, não tinha senso de humor, mas era um homem muito correto, trabalhador e pontual."
A prima Bidu começou a contar que "o Zé era o galã das meninas, olho verde, lindo. Ele tinha uma namorada, o grande amor da vida dele, a...".
E foi interrompida pela mãe, brava: "Ô Bidu, pode falar isso em entrevista?" A prima hesitou e prosseguiu: "Ele era lindo, galanteador, cantava Nat King Cole no ouvido das meninas, tipo o Raj, da novela, sabe?"
Egydio Bianchi, ex-presidente dos Correios, que conheceu Serra aos 14 anos,
e com quem cursou o colégio e frequentou as matinês dançantes do Clube Americano, guarda a mesma impressão que Bidu: "Ele era um sucesso, bom dançarino, só namorava garotas bonitas. Insinuante e charmoso, era o que a turma chama hoje de mulherengo."
Na adolescência, moleques da Mooca passaram a se referir a Serra como "aquele que quer ser presidente do Brasil", disse Bianchi. "Ele era um pouco precoce.
Andava com biografias de Hitler e Mussolini debaixo do braço e, se não me engano, andou lendo O Capital no ônibus para Vila Bertioga. Tinha gente que o achava pernóstico; era uma coisa que ninguém fazia."
Perguntei a Bianchi, que veio a militar com o colega na Ação Popular, se alguma característica pessoal do adolescente Serra se havia mantido intacta até hoje. "Ele já tinha essa coisa de implicar", respondeu, rindo.
Deu como exemplo "o Juribino, que era um ótimo dançarino de rock'n'roll, e o Serra pegava no pé dele por ser muito feio. Perguntava como eu podia ser amigo daquele cara frívolo, que tinha aparência desagradável. Implicava com o Juribino e comigo, que me dava com o sujeito".
Anos mais tarde, quando precisou de um nome de guerra na ap, Serra batizou Bianchi com o nome verdadeiro do Juribino, Adilson.
Bidu havia contado que o primo implicava com ela, dizendo que tinha almofadas demais em casa e que usava muitas bijuterias.
A conversa não foi adiante porque tia Teresa cortou: "Não tem isso, ele só fala coisa boa." E virando-se para mim: "Minha filha é como criança, é muito espontânea, fala sem pensar." Quando o assunto passou a ser a imagem pública de Serra, Teresa se irritou: "Não é nada disso, ele não é antipático. Ninguém sabe a imagem real dele, como ele é. Ele só não tem tempo, é isso!"
Amigos próximos e distantes, correligionários, conhecidos, jornalistas, todos que entrevistei - exceto seus familiares - consideram Serra, de alguma maneira, implicante.
Já o viram implicar com comida, com a maneira de os outros se vestirem, com o vinho servido num jantar, com a redação de um cardápio, com o frio ou o calor, com o trajeto que o motorista escolheu, com o fato de ele ir devagar ou depressa, com o que colunistas escrevem a seu respeito, com as ações de aliados e adversários, com o que o presidente Lula faz e a maneira como a oposição o combate.
continua no post abaixo
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