Picuinhas se imiscuem em decisões importantes, assessores fazem o serviço de magistrados, ministros são condenados em instâncias inferiores, um juiz furta o sapato do outro – como funciona e o que acontece no STF
O primeiro bocejo foi do ministro José Antonio Dias Toffoli. Com as mãos em concha, sobre a boca. Depois foi Gilmar Mendes, com a proteção de uma das mãos, e por três vezes em menos de dez minutos. Marco Aurélio Mello o seguiu, com dois bocejos. Eles escutavam Ellen Gracie ler um relatório. A voz da ministra tem um timbre agradável, mas sem modulação.
Em plenário, à exceção de poucas frases curtas sobre questões pontuais, a ministra nunca fala, só lê. E sempre de maneira monocórdica.
O caso em pauta era uma ação contra os deputados federais Alceni Guerra e Fernando Giacobo, denunciados por fraude em licitação. Tramitava no Supremo Tribunal Federal desde 2007 e prescreveria exatamente no dia seguinte. Ellen Gracie, relatora, votou pela condenação dos dois políticos*.
Com o ministro Eros Grau em viagem, dez ministros estavam presentes. Quatro votaram com a relatora, condenando os políticos: Cezar Peluso, Ayres Britto, Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia. Quatro os absolveram: Dias Toffoli, Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes e Celso de Mello.
E um, Ricardo Lewandowski, desafiou o senso comum: inocentou Alceni Guerra, ministro da Saúde do governo Collor, mas condenou o outro acusado.
Ficaram, então, 5 a 5 para Alceni Guerra, o que o absolveria, porque o empate favorece o réu. E 6 a 4 contra Fernando Giacobo, o que o condenaria.
A subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat, resumiu bem a confusão: “Neste caso, teremos o réu principal absolvido; e o secundário, condenado.”
A cizânia se estabeleceu. “Condenar um e absolver o outro fica muito difícil”, disse o ministro Marco Aurélio, olhando fixo para Lewandowski.
Cezar Peluso também o encarou: “Reconsidere seu voto e absolva os dois.” Lewandowski encabulou-se e disse, titubeante: “Tenho dificuldade de absolver o outro.” Marco Aurélio riu com sarcasmo. Peluso insistiu para o colega mudar o voto. Ellen lembrou que a prescrição ocorreria no dia seguinte.
Quando o presidente Gilmar Mendes ia proclamar o resultado, o advogado do condenado apelou pelo bom-senso: que os dois acusados fossem absolvidos.
O ministro Ayres Britto, num mau momento, sugeriu a suspensão do prazo de prescrição, como se fosse possível. “Mas aí vamos legislar”, protestou Marco Aurélio.
Diante do bafafá e da pressão, um constrangido Lewandowski disse: “Eu reajusto o meu voto e absolvo ambos os réus.”
Marco Aurélio riu de novo.
Ayres Britto podia ter deixado por menos, mas não deixou: “Vossa Excelência mudou o voto, não é?”, indagou, como se não tivesse notado.
Lewandowski respondeu: “A situação é absolutamente atípica.”
A veia poética de Ayres Britto, sempre presente, lembrou-lhe versos de José Régio, que recitou sem pejo: “Não sei por onde vou.
Só sei que não vou por aí.”
Resolveram suspender a decisão, apesar da prescrição no dia seguinte, para esperar o voto do ministro Eros Grau.
Ele o proferiu uma semana depois, e votou pela absolvição dos réus – que na prática estavam beneficiados pela prescrição.
Órgão máximo do Judiciário e sustentáculo da República, o Supremo Tribunal Federal é uma instituição que toma decisões de afogadilho, sem muita lógica – como a mudança de voto de Lewandowski.
Mas sempre as recobre de pompa, de um linguajar precioso que faz sobressaírem as observações maldosas.
Picuinhas se imiscuem em discussões importantes. Assessores fazem o serviço de magistrados.
Há ministros que foram condenados em instâncias inferiores.
Um, cujo pedido de impeachment só não foi encaminhado ao Senado porque o corporativismo prevaleceu.
Outro, que chamou o colega de chefe de capangas. Até a eleição do seu presidente se dá em terreno incerto.
Na última delas, em março, os onze ministros escolheram o presidente para o biênio 2010–12. Com grande seriedade, e o silêncio respeitoso de uma plateia repleta, cada um depositou um papel dobrado, com o nome do escolhido, na urna em forma de cálice carregada por um funcionário. O escrutinador, como manda o regimento, foi o ministro mais novo, Dias Toffoli, de 42 anos.
Com destoante jovialidade, Toffoli contou os votos e anunciou o resultado: dez votos para Cezar Peluso e um para Ayres Britto. Gilmar Mendes saudou o seu sucessor. Na resposta, o ministro Peluso registrou ter sido eleito “por uma regra costumeira e singular”.
A “regra costumeira e singular”, que não consta do regimento, é a eleição do mais velho.
À exceção de uma vez – em 1943, quando Getúlio Vargas outorgou-se a indicação do presidente por decreto, sem que a corte chiasse – o critério da antiguidade prevaleceu.
Com isso, sempre se soube, com óbvia antecedência, os próximos presidentes. Eles serão, depois de Peluso, conforme a linha sucessória, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Lewandowski, Cármen Lúcia e Toffoli.
Se não fosse sair do Supremo por força da aposentadoria compulsória dos 70 anos, que completa neste agosto, Eros Grau substituiria Joaquim Barbosa. (Grau já resmungou que a raia miúda o serviria melhor se ele estivesse na linha de sucessão.)
Por que simular uma eleição cujo resultado é conhecido?
“É uma coisa simbólica, que nos evita desgastes desnecessários”, disse o presidente Cezar Peluso, sentado numa cadeira dos tempos do Império.
Ela faz parte do acervo do antigo Supremo que ainda estava no Rio. Trazê-lo a Brasília antes mesmo da sua eleição foi a primeira marca do estilo Peluso.
Autorizado pelo presidente que saía e que não teve interesse pela mobília antiga –
“Achei que havia coisas mais importantes a fazer”, espetou Gilmar Mendes –, Peluso mobilizou primeiro a seção de documentação e acervo.
Depois, acionou o departamento de Arquitetura (há um, sim), para que redesenhasse a planta com os velhos móveis.
“Vou propor que o gabinete seja tombado”, disse o ministro, satisfeito com a nova decoração.
Depois, acionou o departamento de Arquitetura (há um, sim), para que redesenhasse a planta com os velhos móveis.
“Vou propor que o gabinete seja tombado”, disse o ministro, satisfeito com a nova decoração.
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