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terça-feira, 5 de outubro de 2010

Serra na hora da decisão - 3

continuação do post anterior

Por Daniela Pinheiro
Revista Piauí
João Manuel disse que ele e Serra partilham a visão de que a política econômica é a chave para se resolver os problemas de desenvolvimento e crescimento do Brasil.

"Essas taxas de juros estratosféricas destruíram parte da indústria brasileira", disse. "O custo social e econômico disso foram milhões de empregos perdidos."

Ele acha que os equívocos da economia remontam aos dois mandatos de Fernando Henrique. "Naqueles anos, o Brasil cresceu 2% ao ano, o que é pífio", disse.

"O Serra sempre discordou do que faziam na economia, mas ele estava na turma, o que ia fazer? Passar para o pt?"


Para ele, o objetivo político de Serra é um só: "Acabar com a pobreza. O negócio dele é esse. E é possível, se o Brasil retomar uma meta de crescimento de 7% ao ano, em duas décadas a pobreza estará erradicada."


O autor de O Capitalismo Tardio considera, porém, que Serra tem uma visão fiscal ortodoxa. "Ele tem mania de não dar aumento para funcionário público, para não desequilibrar as contas públicas", disse. "Aí, teve greve de delegado querendo 500 'merréis' de aumento. Dá o aumento, porra. Imagina o custo social de uma greve de delegado? Mas ele não dá!"


João Manuel foi professor de Dilma Rousseff na Unicamp, no mestrado que ela não concluiu. "Ela e o Serra são muito parecidos, têm a mesma visão de mundo", opinou. "Se houvesse uma reorganização política, eles estariam no mesmo partido. É uma gente que não existe mais na política, gente compromissada com o Brasil. Ambos podem ser enquadrados no conceito inglês de servidor público."


Da universidade, Serra voltou à política.

Em 1983, Franco Montoro o nomeou para a Secretaria de Planejamento, na qual sua marca foi a austeridade, e em seguida elegeu-se deputado. Na Constituinte, sua imagem de político de direita se consolidou por ter sido contra a nacionalização dos bancos estrangeiros e a limitação dos juros.


Foi reeleito deputado e depois senador. Fernando Henrique o nomeou ministro do Planejamento.

Foi um ministro de pouca expressividade, que havia divergido do Plano Real, que domara a inflação, e continuava divergindo da equipe econômica liderada por Pedro Malan e Gustavo Franco.

Ainda assim, relutou em aceitar quando Fernando Henrique o convidou, em seguida, para ser ministro da Saúde. "Achei que seria bom para o governo, para ele e para o Brasil", disse o ex-presidente, "mas ele levou um tempão para dizer sim."


A passagem de Serra pela Saúde lhe rende dividendos eleitorais até hoje.

Nas pesquisas internas do psdb, constata-se que os eleitores o identificam imediatamente com os genéricos.

Ele é considerado o político que ajudou os doentes e velhinhos a gastarem menos dinheiro com remédios.

Também conseguiu diminuir o preço do coquetel de medicamentos contra a Aids e proibiu a propaganda de cigarro na televisão.


Para implementar essas medidas, enfrentou interesses enormes e gente influente, como os laboratórios farmacêuticos, multinacionais proprietárias de patentes, a indústria do tabaco, agências de publicidade e redes de televisão.

Enfrentou um inimigo de cada vez, em defesa de causas apoiadas pela opinião pública. "Eu defendo interesses gerais, e não os especiais ou setorizados", me disse Serra. "E isso incomoda, eu sei, mas a meu ver desnecessariamente."


O ex-deputado e empresário carioca Ronaldo Cezar Coelho, que cede o seu jatinho para Serra fazer campanha, colocou a questão em outros termos:

"Ele é um político que defende interesses difusos. Não representa nenhum grupo, nenhuma facção específica. Por isso, é considerado independente, o que faz com que muitos setores não se sintam acolhidos ou temam o que ele pode vir a fazer no poder."


No 1º andar do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, na centenária Estação da Luz, mais de vinte políticos aguardavam a inauguração da exposição sobre Gilberto Freyre.

Ali, estavam Fernando Henrique, o prefeito Gilberto Kassab, Andrea Matarazzo, o presidente do psdb, Sérgio Guerra, e medalhões da política pernambucana: o governador Eduardo Campos, o senador Marco Maciel e o ex-senador Roberto Freire. Como um dos elevadores demorava a subir do térreo, Serra chamou uma funcionária e pediu explicações.


"O elevador está parado no térreo para receber mais gente, e então subir", disse ela.


"Não, não tem isso não, manda subir esse elevador do jeito que está", ordenou ele, rispidamente.


"Já está subindo, governador", disse a moça.


"Não está nada. O elevador está parado, olha aqui o botão de 'parado' aceso. Liga esse elevador", rebateu Serra.


Observando a cena, Roberto Freire falou:

"Olha para isso, rapaz! O homem está com o Brasil inteirinho aqui e fica prestando atenção no elevador. Meu Deus, ele é estressado demais."

Enquanto o governador continuava a resmungar, Freire disse: "O Serra não aguenta nada que saia do controle dele. Isso às vezes é bom, mas deve ser uma complicação da gota."


Num canto, depois, Freire disse que estava preocupado com a polarização entre Aécio Neves e José Serra dentro do psdb. "Estou trabalhando para convencer o Aécio que ele tem que ficar com o Serra", disse. "Se não ficarem juntos, vão se foder, vão perder, acabou."


Serra e Eduardo Campos subiram para o terraço do prédio do relógio na Estação da Luz, para o paulista mostrar a vista ao pernambucano.

Olhando para o teto dos prédios ao redor, Serra disse: "O que fica é cultura. A coisa que o Covas fez de mais importante foi a duplicação da Rodovia dos Imigrantes. Mas ele ficou marcado pela construção da Sala São Paulo."


Deu-se uma discussão sobre a diferença entre bode, carneiro e cabrito. Alguém lembrou, longe dos ouvidos de Serra, da piada, espalhada por Fernando Henrique, de que Serra teria visto uma vaca pela primeira vez aos 50 anos de idade. Enquanto isso, Serra reconhecia candidamente nunca ter imaginado haver diferença entre bode e cabrito.


Quando ele mesmo é o alvo de sua franqueza, Serra fica involuntariamente simpático.

A um amigo que tentava convencê-lo a ser candidato a presidente, argumentando que "é fácil ganhar da Dilma porque ela não tem a menor graça", por exemplo, ele retorquiu: "E eu tenho alguma graça?"


Quando a franqueza é dirigida a outros, ele é capaz de, depois de anos sem ver alguém, cumprimentá-lo com um espantado e espantoso:

"Nossa, como você está gordo!"


Ou então de dizer a uma mulher, como se fosse um elogio, que ela se veste como uma perua.

Ele me contou que, ao encontrar com a filha de Orestes Quércia, uma moça muito bonita, lhe disse que ela era "a prova da evolução da espécie". Segundo Serra, a moça "riu da piada".


Para Regina Faria, viúva do ex-assessor da Presidência Vilmar Faria, Serra tem um senso de humor especial.

Quando ela e o marido dividiram com ele um apartamento no Chile, Serra gostava, por exemplo, de dar sustos.

Tanto que, quando estava grávida de sete meses, ele colocou uma cobra de papel em cima da porta do banheiro. "Quando entrei, a cobra caiu em cima de mim e tomei um tombo", contou.

"O Vilmar ficou furioso, mas o Zé não tinha noção, não conseguia ver um perigo ali", disse. (Serra se lembra da cobra, mas não de Regina estar grávida.)


No seu apartamento, ela mostrou uma foto de Serra, aos 20 e poucos anos, de shorts jeans, camisa polo verde e chinelão.

A seu lado, Regina fazia uma cara de deboche e uma outra moça parecia emburrada. "Era a Helga, com quem ele implicava porque tinha perna fina", contou.


Regina definiu as virtudes dele na seguinte ordem:

"Tenacidade, disciplina profissional, obstinação, muito exigente, não tem medo de trabalhar com gente competente e é muito generoso."

O defeito mais evidente, para ela, é classificar as pessoas à primeira vista, de modo superficial:

"Ele divide as pessoas e as coloca em celas na sua cabeça.

Tipo: essa é competente, aquele é burro, aquele outro é confiável, aquele não.

E aí fica difícil mudar sua opinião."


Ela lembrou a viagem entre Brasília e São Paulo, em 2001, num jatinho da Presidência, trazendo o corpo do marido para ser enterrado em São Paulo. "O Zé não falou nada", contou.


"Ele sentou ao meu lado e ficou 45 minutos de mãos dadas comigo. Aquilo foi muito forte, de uma profundidade que poucas pessoas conseguem ter."


Depois de falarmos sobre outros assuntos, perguntei qual ela achava ser a maior diferença entre Serra e Fernando Henrique.

Novamente, ela usou a morte do marido como exemplo:

"O Fernando Henrique, no enterro do Vilmar, bateu nas minhas costas e disse: 'Não chore.'"


Verônica Allende Serra usava moletom e sandálias Croc, tarde da noite, em sua casa no bairro do Morumbi.

Morena, cabelos longos que lhe dão um ar latino, tem 40 anos, trabalha no mercado financeiro e é casada com Alexandre Bourgeois, filho de um francês com uma brasileira.

Têm três filhos: Antonio, de 6 anos, Gabriela, de 2, e Francisco, de 10 meses. Outra filha, que havia nascido com um problema congênito, morreu aos 3 meses de vida.


(A prima Bidu contara que, graças a um tratamento de fertilidade com o médico Roger Abdelmassih, Verônica pôde ter as duas últimas crianças. Quando Bento xvi esteve em São Paulo, Abdelmassih pediu para que Serra o incluísse no encontro privado com o papa, e foi atendido. "Imagina agora, que o médico foi preso", disse Bidu, "o Zé não pode ouvir falar o nome dele.")


"Ele está rindo mais, você não acha?", perguntou Verônica.

Havia meses, Serra se submetia a um tratamento dentário que mudara seu sorriso. Os dentes frontais da arcada superior foram alinhados e o recuo gengival foi recapeado com uma fina camada de resina.

Ou seja, não havia mais motivo para que chargistas o retratassem como Nosferatu.

O governador me dissera que apenas havia trocado de pasta dental e arrumado uns "dentes de baixo".


Sentada na cabeceira de uma mesa de vidro, de lado para um grande espelho, para o qual olhava às vezes e ajeitava o cabelo, Verônica admitiu que o pai tem uma imagem pública bem diferente da privada. Mas acrescentou que um político deve se comportar exatamente dessa maneira.

"Quando o assunto é sério, a reação deve ser séria", disse. "Não é do feitio dele ficar fazendo analogias engraçadas no meio de tragédias, ou dar exemplos tirados do futebol, como se faz por aí."


Segundo ela, Serra "não finge ser o que não é. O marketing dele, se é que ele faz algum, é o da absoluta sinceridade. Ele não é um entertainer, é um ser público puro."


Em família, já discutiram, ela contou, como ele poderia deixar de ser tão professoral. "Ele pode até ser didático, mas o ideal é tentar usar palavras mais simples, um vocabulário menos acadêmico, mas nem por isso simplório", disse.

"Isso ele já mudou. Quando vai dar aula na periferia, ele passa vários conceitos a partir de uma historinha, tipo um key study." Ela pensa que, como é rigoroso com as pessoas, Serra é avaliado com inflexibilidade.


Verônica tem um alerta que envia para o seu e-mail pessoal tudo o que sai na internet com a expressão "filha de Serra".

Vez ou outra lhe chegam mensagens de pousadas nas montanhas que aceitam crianças. Mas em geral, são estocadas ou críticas ao pai.

Ela investigou a origem de um dos blogs que mais a atacavam, e descobriu que o provedor que hospedava a página ficava no endereço de uma empresa de um parente de Ciro Gomes.


Encontrei num domingo o filho de Serra, Luciano - que tem 36 anos e parece uma versão melhorada do ator Ben Stiller.

Ele estava com a namorada, uma moça loira, magra, calada e arrumada, e o pai dela, que me cumprimentou com uma das mãos cheia de castanha-do-pará.

Fomos juntos para o estádio do Morumbi, onde quase 50 mil pessoas aguardavam o início do clássico Palmeiras e Corinthians.


Chegamos na tribuna de honra com o jogo começado há cinco minutos. "Perdi alguma coisa", perguntou Serra a Roberto Freire, e se sentou na ponta da cadeira como quem estivesse prestes a levantar e sair correndo.

"Quem é esse 27?
Quem é esse cabeludo?", perguntou alto, com os olhos fixos no campo, sem esperar a resposta.


"Aaaaaaaiiiiiiii", gritou, quando o Corinthians quase marcou um gol.

"Ai, meu Deus, o medo me fez suar a mão", disse, e deslizou a mão molhada pelo meu braço direito. Na maioria do tempo, ficava calado, os olhos grudados no gramado.

Vez ou outra comentava estar aliviado por um passe errado do adversário ou uma defesa benfeita do Palmeiras. Quando o juiz anulou um gol impedido do Corinthians, abraçou o filho gritando: "Êeeeeee! Que alívio!"


No segundo tempo, aparentemente incomodado com a minha presença, Luciano cochichou algo no ouvido do pai e foi embora.

Faltando poucos minutos para o final, o Palmeiras marcou um gol. Em um milésimo de segundo, Serra pulou da cadeira, deu uma gravata lateral em Roberto Freire, projetou o corpo para a frente e tirou os dois pés do chão ao mesmo tempo, levando-os para trás como se pulasse corda. Grudado em Freire, que tinha o rosto vermelho e suava, ele berrava "Goooollll" com uma expressão de alegria pura, ingênua e infantil.


"O futebol tem uma dimensão afetiva e cultural para o Serra", explicou o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, presidente do Palmeiras, em uma manhã em sua casa.

É uma válvula de escape, uma ponte entre ele e os outros. É falando de futebol que ele se aproxima e quebra o gelo para falar com quem não conhece. Num estádio, ele se sente um brasileiro do povo, e é acolhido como um igual. Talvez por isso só estivesse relaxado interiormente no jogo contra o Corinthians, apesar de estar tenso até o Palmeiras marcar.


O avião do governo de São Paulo, fabricado havia mais de vinte anos, decolou e Serra enterrou os olhos em um jornal.

Ele ia para Brasília, onde teria uma reunião com o presidente Lula para tratar sobre uma emenda da previdência social e a concessão dos aeroportos de Cumbica e Viracopos.

Ainda com o avião embicado, eu puxei um assunto e ele, com a expressão grave, me disse: "Deixa passar a turbulência. Minha mão transpira, olha só!"

E, pela segunda vez em menos de uma semana, senti a palma molhada deslizando pelo meu antebraço.


Quando a aeronave se estabilizou, ele aproveitou para despachar com os secretários. Enquanto olhava um gráfico sobre a situação da concessão da Cesp, houve nova turbulência.

Ele se calou, ficou imóvel como uma estátua e só alguns segundos depois olhou para os lados procurando um interlocutor. "Tenho horror quando faz assim...", disse mexendo a mão direita para cima e para baixo.


O almoço foi servido, mas ele devolveu a bandeja intocada. O chefe da segurança quis saber se havia algum problema com a comida. "Muito alho", disse Serra. "Já falei um milhão de vezes e ainda me mandam coisa com alho."

Providenciaram-lhe um sanduíche de queijo de minas, que ele comeu maquinalmente.


Como o voo seria longo, pedi que contasse como era a sua relação com Geraldo Alckmin e explicasse por que desistira de concorrer à Presidência, em 2006.

"Mesmo quem era simpático a mim achava que o Alckmin tinha direito a ser governador", ele começou, pronunciando a palavra "direito" com sarcasmo. Durante quase meia hora, Serra discorreu sobre sua relação e opinião sobre Alckmin. Ao final, pediu que nada fosse publicado.


Passou a falar sobre comida. Defendeu a tese de que um cozinheiro de verdade sabe preparar qualquer prato sem usar alho ou cebola.

Ele se incomoda quando dizem que suas implicâncias alimentares são manias - além de alho e cebola, não come frituras, não toma café e não digere sementes.
Resolveu dar a receita de um macarrão "espetacular" para provar que entende do assunto. "Como chama a pasta dura?", perguntou.

Alguém respondeu que era grano duro. "Ah, então essa, é com essa grano duro", continuou. "O molho leva tomate, azeite, alcaparra, já botei até gengibre.

Como se chama aquela folha da moda?

É rúcula, não é? Então, pode pôr também. Esse molho fica maravilhoso e não tem alho nem cebola."


Houve quem duvidasse que ele soubesse realmente preparar o tal prato. "Posso fazer essa pasta porque sei", garantiu, esclarecendo que aprendeu a cozinhar quando morou em Princeton.

"Fazia truta ao forno, coisas com berries, banana assada com cravo e canela", listou.


"Eu queria ir em Heliópolis com o Zidane", disse o presidente Lula no ginásio do Ibirapuera, numa rodinha em que estavam Serra, Geraldo Alckmin e Kassab.

"Mas seria demais eu ir lá só por causa dele, seria bom se tivesse uma obra do pac para inaugurar."

Passava das nove da noite e eles aguardavam o início da cerimônia de formatura da primeira turma do curso de administração da Unipalmares, cujos alunos são em sua maioria negros.

Havia uma mesa de salgadinhos e sanduíches. Garçons serviam espumante, uísque e cerveja. Serra beliscou um sanduichinho de pão branco. "Sanduíche é bom porque enche o estômago", justificou.


Alckmin, o paraninfo da turma, avisou que, além de atrasada, a solenidade seria longa. "Na última vez que vim, saí daqui mais de uma da manhã", disse. O presidente também estava incomodado com o horário. "Isso é hora de homem velho estar na cama", brincou Lula.


continua no post abaixo

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