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terça-feira, 5 de outubro de 2010

Serra na hora da decisão - 2

continuação do post anterior

Por Daniela Pinheiro
Revista Piauí


A diferença é que escancara suas implicâncias, enquanto a maioria dos políticos as silencia.

Além disso, enfatiza divergências, cita dados de cabeça, é professoral e grave na exposição de argumentos, bufa como um francês, mostra indiferença como um italiano, tem juízos taxativos e se esforça longamente - às vezes mais do que o razoável - para que sua opinião prevaleça, mesmo em assuntos fúteis.


Ao voltar de um compromisso na periferia de São Paulo, no ano passado, José Serra contou que havia visto Sangue Negro no sábado anterior.

"Achei bom, mas o Daniel Day-Lewis é muito previsível"
, disse, com desdém, sobre o ator inglês que ganhou o Oscar pela interpretação no filme.

E esticou o queixo para frente, fechou os olhos, fez uma careta e, balançando a cabeça, mastigou um fumo imaginário. Não foi uma interpretação digna de um Oscar, mas imprevisível e engraçada.


Ele foi ator amador na universidade e trabalhou numa peça de José Celso Martinez Corrêa, o diretor do Grupo Oficina. "Se eu não fosse político, queria ser ator", disse. "Nunca me senti tão bem quanto no palco, como ator."


Na despedida, tirou cinco folhas grampeadas do meio de uma papelada e, ao entregá-las, falou:

"Lê esse texto do Machado de Assis.

É sobre sombras, a alma de fora e a de dentro.

Tem muito a ver comigo.

Li Machado quando ainda era teenager:

Quincas Borba, Dom Casmurro, tudo."


"O espelho", que tem o subtítulo "Esboço de uma nova teoria da alma humana", é um conto que Machado escreveu em 1882, um ano depois da publicação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, a obra-prima que inaugurou a sua fase realista.
 
O conto se passa à noite, na pequena sala de uma casa no morro de Santa Teresa, no Rio. Tem quatro personagens, homens de meia-idade que discutem amigavelmente "questões de alta transcendência", e um quinto, o único com nome, Jacobina.

Ao contrário de Serra, Jacobina não gosta de discutir.

Mantém-se à margem do debate por pensar que "a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem como uma herança bestial".

Tem uns 45 anos e é descrito como "provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico".


Ao discutir a "natureza da alma", os quatro personagens divergem radicalmente. Jacobina é convocado a expor sua opinião sobre o tema.

Prefere contar um caso verídico, que se passou com ele, para demonstrar que o homem não tem uma alma só, mas duas.


Os amigos fazem troça de Jacobina. Ele conta que, ao ser nomeado para o posto de alferes, quando tinha 25 anos, passou a ser tratado como um homem ilustre.

Foi convidado a ficar uns dias no sítio de uma tia, e a impressão se reforçou: é enaltecido pela parenta e seus escravos como alguém de destaque. Para homenageá-lo, um grande espelho é colocado no seu quarto, no qual ele se admira, orgulhoso da farda.


Mas a tia tem que viajar, os escravos fogem e Jacobina fica sozinho. Sem os elogios, sem o reconhecimento da sua condição de alferes, ele se sente perdido.

O tempo não passa, o silêncio é enorme, ele não sabe o que sentir, pensar ou fazer. Usando roupas civis, olha furtivamente para o espelho e não se reconhece. Vê uma imagem sem contornos, embaçada. Desespera-se e cogita o suicídio.


Tem então a ideia de vestir o uniforme e se postar na frente do espelho. Ao levantar os olhos, Jacobina se reencontrou.

O espelho reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior.

Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho.


A primeira alma seria, então, interna: a maneira como a pessoa se vê.

A segunda seria externa: o modo como é vista de fora, pelos outros.

Para Jacobina, essas duas almas "completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja.

Quem perde uma das metades perde naturalmente metade da existência".


Como boa parte dos contos de Machado da fase madura, "O Espelho" permite múltiplas abordagens - as filosóficas (a tensão entre a existência subjetiva e a objetiva), metafísicas (a inexistência da unidade do Ser), psicanalíticas (a fase do espelho, teorizada por Jacques Lacan) e as políticas (o nome do personagem seria uma alusão aos radicais da Revolução Francesa).


Dez dias depois, Serra falou sobre o conto.

Viajara ao Rio para participar de um seminário internacional de finanças, no qual foi apresentado como aquele "que lidera todas as pesquisas na sucessão do presidente Lula", e de um jantar. Era quase meia-noite quando entrou no carro e tomou o rumo do aeroporto, onde o jatinho do governo paulista o aguardava para levá-lo de volta.


Ao sentar, imediatamente pegou um frasco de álcool, à sua disposição no bolsão do assento do passageiro, e limpou as mãos.

A gripe suína não existia ainda: há anos ele tem o hábito de lavar as mãos várias vezes ao dia, sobretudo depois de cumprimentar estranhos; quando não pode, usa álcool.


"O conto mostra que o Eu tem três dimensões", começou, fechando a tampa do álcool. "O Eu que você é, o que é visto pelos outros e o Eu que você vê. Machado é um gênio. Imagine, no final do século xix, sem Freud nem nada, ele chegou a essa conclusão."


Trazendo a conversa das duas almas e dos três Eus para um plano mais prático, disse:

"Muita gente chega para mim, depois de um tempo, e diz:

'Nossa, não sabia que você era assim.' A pessoa quer dizer que ficou impressionada positivamente.

Isso ocorre porque a gente é de um jeito, acha que é de outro, e tem uma imagem social diferente. Como político, tudo isso fica exacerbado."


Aquilo o incomodava? "Não é achar bom ou ruim, só acho curioso", respondeu. "Acho que todo mundo tem isso, mas fico me perguntando por quê."


Ventava bastante no Santos Dumont e Serra passava a mão pela testa como se tirasse uma franja imaginária do rosto. Antes de entrar no avião, ele comentou a sua imagem: "Às vezes, tendo a racionalizar demais. Como trabalho com a lógica das coisas, o que pode ser uma virtude ou defeito, como quiser, pode parecer arrogância.

Mas, de fato, tenho muita dificuldade de entender como uma pessoa não compreende uma coisa que é lógica."


Correligionários que colecionam pesquisas sobre a imagem de Serra garantem que a figura de antipático e arrogante foi inventada por seus desafetos e jornalistas, e encontra respaldo apenas na classe média alta.

Um deputado tucano me mostrou (com o compromisso de não citá-lo: quando se trata de Serra, até os elogios são em off) uma extensa pesquisa, feita em municípios da Bahia, onde a imagem dele é excelente.


Em Itamaraju, a 700 quilômetros de Salvador, onde boa parte da população tem antena parabólica e recebe o sinal da programação de São Paulo - assim como acontece na maioria dos municípios do Norte, Nordeste e Centro-Oeste -, a terceira característica mais citada de Serra é a simpatia.

Nas pesquisas nacionais, a rejeição a ele fica em torno de 30% do eleitorado, enquanto a de Dilma Rousseff bate nos 40%.


Amigos dizem que Serra é engraçado, espirituoso, fofoqueiro e - acreditem - que adora dançar.

Mas reconhecem que ele não passa essa imagem. "

Serra não faz concessões, não finge ser outra pessoa, mesmo que isso lhe cause prejuízo", disse José Gregori, ex-ministro da Justiça.

"Você imagina ele fazendo graça no sofá da Hebe, no programa do Faustão ou na Luciana Gimenez?

Pode até fazer, mas não vai soar natural.

O problema é que a política hoje passa muito por esse padrão, por essas referências."


A economista Liana Aureliano, sua amiga há quarenta anos, disse que as reações que Serra provoca dependem do interlocutor. "Ele não dá abraços efusivos nem estende a mão com vontade, o que para mim é positivo, pois mostra que não é fingido", afirmou.

"Ele adora um debate, um embate, na verdade. Uma briga o alimenta intelectualmente, mas há quem ache isso chato. E ele, definitivamente, não aguenta burrice."


Uma tarde, em seu gabinete na Secretaria paulista da Cultura, João Sayad avaliou que há na persona pública dele um traço que não é levado em conta: a timidez.

Depois de uma reunião numa cidade do interior do estado, ele caminhava com Serra, viu um bar e sugeriu que tomassem algo. O governador disse que não entraria porque as pessoas estavam olhando demais para ele. "Imagine só, um candidato à Presidência ter vergonha assim", disse Sayad.


Serra começou a usar o Twitter para ter contato direto e próximo com os eleitores.

Em setembro, o que ele escrevia era acompanhado diariamente por mais de 100 mil pessoas. Como a troca de mensagens não é mediada, ele passou a ser chamado com frequência de "Zé" e até de "mano".

Quando escreveu que havia passado a noite ouvindo Paul McCartney e o guitarrista Santana, alguém postou um comentário sarcástico:

"O.k., José Serra virou político pra-frentex, psicodélico e que gosta de Woodstock e Santana... Sei."

Minutos depois o governador respondeu: "Por que a surpresa? Também sou da geração do rock, dos Beatles e de Woodstock."


Ele recebe cerca de 500 mensagens pessoais por dia. Perguntei por que havia divulgado no Twitter a seguinte troca de mensagens com a apresentadora de televisão Ana Paula Padrão, da Rede Record:


"Pra quem nem e-mail tinha, você está super up to date!", escreveu ela.


"Nunca é tarde demais para aprender. A curiosidade me trouxe para cá. Gostei e vou ficando", respondeu ele.


"Foi para ela não brigar comigo"
, Serra explicou. "Porque ela é ciumenta e eu não a vejo faz tempo. E a Record está batendo em mim pesado por causa dessa disputa com a Globo. E ela fica fazendo cara de brava lendo...", disse.


Serra escreveu sobre dezenas de assuntos no Twitter. Mas quase nunca sobre suas ideias a respeito do Brasil e sobre política. E manteve silêncio absoluto sobre sua candidatura a presidente.


Já havia escurecido quando Fernando Henrique Cardoso levantou e abriu a janela para que a fumaça de cigarro se dispersasse.

Na volta para a poltrona, disse que o silêncio de Serra não é fortuito. "Ele viu as pesquisas de opinião e não falou nada sobre a crise do Senado e o Sarney de caso pensado", contou.

"Ficando quieto, ele não se confunde com os políticos, que têm uma imagem péssima, de corruptos. E aparece como um bom administrador, um governador que tem coisas para mostrar. Ficando quieto, ele deixa a briga para os outros. Veja o que aconteceu com a Dilma, que foi apresentada como candidata com tanta antecedência."


Para o ex-presidente, Serra tem uma enorme vantagem, em termos de imagem, sobre os seus eventuais adversários. "Ele nasceu na Mooca, seu pai era feirante, foi pobre, só estudou em escola pública, foi perseguido pelos militares", disse.

"Num país de enorme desigualdade e de injustiça social, ele veio de baixo e se fez sozinho, não tem culpa ou responsabilidade pela pobreza. Você fica em desvantagem quando é de classe média, filho de militar e nasceu em Botafogo, como eu, por exemplo."


Fernando Henrique defende que José Serra seja o candidato dos tucanos à Presidência em 2010.

Reconheceu que Aécio Neves poderia ser um concorrente "mais palatável" aos eleitores.

Mas, além de acreditar que Serra terá boas chances no pleito, acha que "ele é o presidente que o Brasil precisa agora. Depois de oito anos de desconversa, evasivas e conciliações de todo tipo, o país precisa de alguém firme, com clareza e diretrizes. E o Serra é rombudo".


Mas qual política Serra defenderia na campanha eleitoral?

Fernando Henrique respondeu que o conteúdo da sua plataforma e mesmo a natureza da sua Presidência devem ser definidos mais tarde. "A vitória numa campanha eleitoral depende do contexto em que ela se dá", disse.


Um menino gordinho levantou a mão e perguntou a Serra o que ele fará se for eleito presidente da República.

"Uhhhhhhn, muita coisa", respondeu o governador, na frente da sala de aula. "Eu faria o governo federal trabalhar para o crescimento do emprego. Quem tem desempregado na família?", perguntou ele aos 35 alunos de uma classe de 4ª série de uma escola no Mandaqui, bairro paulistano de classe média.


Desde que foi eleito prefeito, de quando em quando ele dá aulas em escolas públicas.

Explicou que é um jeito de monitorar o ensino, interagir com crianças e identificar demandas da população.

Naquela tarde, Serra falou duas horas, sobre os mais variados assuntos, para uma plateia que se alternava entre surpresa e dispersa.

Tomou tabuada (apenas dois alunos acertaram), fez com que lessem em voz alta ("Forte! Solta a voz! Não estou entendendo nada!", encorajou, a seu modo, um menino), definiu curiosidade mórbida ("Alguma coisa que a gente acha feio, mas quer ver"), defendeu a leitura diária de jornais, mas os criticou ("Eles publicam a notícia errada e, em vez de corrigir, dizem que eu mudei de opinião").


Sete levantaram a mão para dizer que tinham desempregados na família. "Então, quem está desempregado quer trabalhar", disse o governador.

"E emprego tem a ver com que faz o governo federal, o de Brasília. Isso eu cuidaria muito se fosse eleito presidente. E cuidaria também da saúde e da educação."


Quando aumentou o número dos que olhavam pela janela ou rabiscavam cadernos, Serra pediu que os iguais a ele, filhos únicos ou palmeirenses, levantassem a mão.

Havia apenas uma menina sem irmãos e cinco meninos palmeirenses, contra dez são-paulinos e dezenove corintianos.

Foi a deixa para que ele introduzisse o conceito de tabela, o ponto-chave da sua aula.


Ao sair da escola, um menino chamado Eron se aproximou e entregou um papel ao governador, que prontamente começou a assinar. "Não! É para você ler", alertou o garoto.

Era uma carta pedindo para que o pai, um policial militar, fosse transferido para um posto perto de sua casa. "Vou ver isso", disse o governador.

(O pleito foi encaminhado, mas Serra nunca soube se foi atendido.)


Ao entrar no carro, Serra recebeu um bilhete. Haviam ligado quatro políticos, entre eles Antonio Palocci e Tasso Jereissati.

"Ai, que fome", ele disse, lendo os nomes no papel.

Com um sorriso, comentou: "Me sinto revigorado com crianças."

O carro estacionou diante de um hospital, onde o helicóptero do governo o esperava. Ele se acomodou perto da janela, juntou alguns papéis e fez um sinal ao ajudante de ordens, que prontamente lhe passou um frasco de álcool em gel.

Ao comentar a aula disse: "Nunca vi alguém falar alto ao responder a uma pergunta na frente dos outros. Quando vão escrever na lousa é sempre uma letra mínima, reparou? Tudo para se proteger."


Serra foi eleito presidente da União Nacional dos Estudantes, em 1963, quando cursava engenharia na Universidade de São Paulo. Integrava a Ação Popular, organização de origem católica, nebulosamente socialista, que não era marxista, nem revolucionária e nem defendia a União Soviética.

"Ele tinha um senso de justiça exacerbado, era muito ligado às questões humanas",
lembrou Egydio Bianchi. "Não era um formulador doutrinário, ele era um cara da ação."


Um de seus parâmetros na política era madre Cristina, uma freira católica formada em psicologia, com especialização em psicanálise pela Sorbonne, que fundara a AP com Herbert de Souza, o sociólogo Betinho.

Numa entrevista à escritora Maria Rita Kehl e ao jornalista Paulo Vannuchi, madre Cristina, que morreu em 1997, contou como Serra entrou na vida pública quase que por acaso.


A gente pensou: temos de fazer o presidente da une. Aí fomos catar o Serra, que estava estudando engenharia. [.] Descobrimos que era inteligente e que, se déssemos uma engomada nele, ele toparia. Então, a gente pegou o Serra e disse: Você vai ser o presidente da une. Ele disse: "O que é une?" Bom, une é isto e aquilo. "Ah, tudo bem." E assim começamos a ganhar a une.


Com o golpe e o exílio, Serra abandonou a Ação Popular e a política, dedicando-se a estudar economia, primeiro no Chile e - com a derrubada de Salvador Allende - nos Estados Unidos.

Sua obra acadêmica compõe-se de artigos, dos quais dois se destacaram, ambos feitos em coautoria.

Um foi escrito com Fernando Henrique, em Princeton, "As desventuras da dialética da dependência".

"Eu olhava pela janela e, às quatro da manhã, a luz do quarto do Serra era a única acesa", contou o ex-presidente. "Lá estava ele, revisando o artigo, que eu achava que estava pronto há muito tempo."

O outro foi feito com Maria da Conceição Tavares, "Além da estagnação".


Serra voltou ao Brasil antes da anistia, em 1978, e retomou a vida acadêmica, enquanto passava por sessões de psicanálise com madre Cristina.

Foi dar aula na Universidade de Campinas, onde era professor o marido de Liana Aureliano, o economista João Manuel Cardoso de Mello, um dos idealizadores do Plano Cruzado, no governo Sarney. Ele é o único a fumar no gabinete de Serra.


"Espero que não tenha vindo falar dessa baboseira de currículo", disse Cardoso de Mello ao me dar boas-vindas. Mesmo com a resposta negativa, continuou: "Ficar nessa coisa pequena, nesse detalhezinho, nessa mesquinharia se o Serra se formou ou não se formou. O Serra não terminou a graduação, e daí?

Qualquer instituição de ensino pode te dar um título, depende só dos critérios que você usa. Mas não, todo mundo quer ficar nessa discussãozinha de classe média."

continua no post abaixo

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