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terça-feira, 5 de outubro de 2010

Serra na hora da decisão - 4


Por Daniela Pinheiro
Revista Piauí


Serra aproveitou uma brecha para falar com o presidente sobre a implantação de trens na Baixada Santista.

Foi sua única conversa útil da noite.

Saiu do ginásio no meio de um show de mulatas.

Eram quase duas da manhã, e dali a cinco horas embarcaria para o Ceará e Pernambuco.

"Nossa, hoje para mim parece que já é ontem", comentou.

Ele disse que estava com vontade de comer rosbife, "que não é tão gordo", mas que ia ficar mesmo em jejum.

Na semana seguinte, num trajeto de helicóptero, ele falou, a contragosto, sobre as suas relações com a imprensa.

Perguntei se ele achava que suas características negativas eram mais exploradas do que as positivas.

"Não, não acho, mas existe um script que alguns precisam seguir", disse.

"Eu sou o cara que soprou no ouvido do Lee Oswald, entende? Tudo, acham que fui eu.

O Genoíno, que era até meu amigo, disse que era eu quem estava por trás de divulgar o caso Waldomiro, um sujeito que nunca vi na vida."


O oncologista carioca Jacob Kligerman, amigo de longa data, havia dito algo parecido:

"Tem duas coisas que tiram o Serra do sério:

falar que foi ele que inventou a candidatura da Marina Silva para desestabilizar a da Dilma, e que foi ele o responsável pela investigação no escritório da Roseana Sarney, em 2002, quando a pf achou aquela montanha de dinheiro"
, disse.


No helicóptero, Serra fez uma concha com a mão e colocou ao lado de sua boca na tentativa de ser mais bem ouvido:

"Em qualquer pesquisa, eu tenho, disparado, mais votos que qualquer um e na imprensa a minha imagem era de ser ruim de voto.

Agora, inventaram que eu atropelo os outros, sei lá, ou que a 'turma do Serra' foi derrotada dentro do partido.

Tudo isso é script.

Na verdade, quem é contra mim no psdb? O Tasso?"


O ex-deputado tucano Márcio Fortes acha que o fato de o presidente ter cerca de 80% de aprovação popular não trará dificuldades a Serra.

"Quem tem a aprovação é o Lula, não a Dilma", disse ele em seu escritório, no Rio.



"O Serra terá o que mostrar, em matéria de realizações, tem uma experiência administrativa fantástica, e as pesquisas mostram que ele não passa falsidade, que é confiável."

A opinião de Márcio Fortes é a dominante no psdb. Para os tucanos alinhados a Serra, a campanha de 2010 se dará em torno de obras e empatia, e não em torno de posições políticas e ideológicas.


Márcio Fortes tirou de uma pasta um papel rabiscado com canetas azul e vermelha. "Isso aqui é uma pesquisa encomendada pelo Planalto sobre os programas do governo Lula", falou.

"Com ela dá para ter uma boa radiografia da situação."

A pesquisa aponta que as características que os eleitores mais admiram nos políticos são competência, capacidade de administração e honestidade.

"Isso é o Serra", ressaltou Fortes.

Segundo o levantamento, o Bolsa Família tem 55% de aprovação, seguido pelo Fome Zero, que nem existe mais, com 20%, e o Minha Casa, Minha Vida, com 18%.

"Olha o que as pessoas querem", interpretou Fortes.

"Elas querem ter uma renda e uma casa para morar."


Aloysio Nunes Ferreira, secretário-chefe da Casa Civil do governo paulista, resumiu assim a questão do discurso de Serra na campanha:

"Quem não quer a cidade com infraestrutura, com boa escola, um sistema de transporte decente?

É isso que ele terá para mostrar."


Com esse objetivo, o governo Serra investirá 20 bilhões de reais, até 2010, no metrô e nos trens da região metropolitana.

Na recuperação das estradas vicinais serão outros 15 bilhões até o fim do mandato.

Nas escolas técnicas e profissionalizantes a meta é de aumentar em 100 mil o número de matrículas. "Serra tem o reconhecimento de ser um administrador completo", disse Nunes Ferreira.


Para Fernando Henrique, não basta Serra enumerar obras ou explicar o que precisa ser feito com a economia: "A eleição do Obama demonstrou que o bom candidato é aquele que simboliza a mudança, inspira as pessoas, lhes dá uma visão de que a vida e o país podem melhorar."


Perguntei ao ex-presidente se, como ele dissera a um conhecido comum, continuava achando que Serra tinha "paixão pela gerência", em detrimento de uma visão abrangente do Brasil, que sensibilize os eleitores.


"Não é bem assim", começou Fernando Henrique.

"O Serra é um ótimo gestor e ponto final. Mas acho que ele é mais administrador e economista do que formulador. É mais pragmático que imaginativo. Então, ele precisaria calibrar melhor o discurso. Adianta pouco ele insistir em falar de economia, em juros, em câmbio flutuante, em Banco Central e metas de inflação. Todo mundo sabe que ele entende de economia. Seria melhor se ele explicasse que sabe o que é ser pobre, e como vai fazer os pobres melhorarem de vida. O Serra precisa formular uma política que leve as pessoas a ver um futuro."


Na despedida, ao abrir a porta do elevador, Fernando Henrique sorriu e alertou: "Olha lá, hein, não vá me intrigar com o Serra." Antes, sem saber que o amigo gosta do conto "O Espelho", havia dito: "O Serra é uma alma atormentada."


Numa noite de setembro, Serra entrou em seu gabinete no Palácio dos Bandeirantes pingando colírio e contando que tinha ido ao enterro do pai do prefeito Gilberto Kassab, emendado uma maratona de reuniões e ainda teria um jantar com a colunista Dora Kramer na casa do empresário Andrea Matarazzo, para o qual estava atrasado.
Ele se sentou em uma poltrona ao lado do telefone e continuou a pingar o colírio enquanto conversava sobre sua imagem, mais de um ano depois de ter me dado o conto de Machado de Assis.

Dessa vez, ouviu uma lista de comentários a seu respeito feitos por amigos, aliados e adversários: mandão, implicante, bom administrador, fala antes de pensar, manipulador, tem dificuldade para relaxar, generoso, mais pragmático do que imaginativo.


"Olha, que engraçado isso",
ele falou, em voz baixa, antes de ouvir a lista até o fim.

De todas as características, ele se reconheceu em apenas uma: bom administrador.


"O que é mandão?",
indagou. "Se tem uma decisão para ser tomada, se há algo a fazer, eu faço, não fico contemplativo, esperando."


Ele não se acha implicante.

"Eu gosto de provocar, isso sim. Gosto de pegar no pé para amolar as pessoas.

Como quando um secretário veio aqui com um sapato escandaloso, ou quando o Arthur Virgílio usou camisa preta com terno, ou o João Sayad que faz nó de gravata mole.

Mas isso é brincadeira, é uma micro-obsessividade que estabelece uma relação mais pessoal."


O que pareceu tê-lo chateado mais foi a opinião de que não é um formulador político.

"De fato, não sou um teórico, mas isso não significa que não tenha uma formação teórica", afirmou.

Desculpando-se por parecer cabotino, disse que no governo Montoro foi ele quem deu as linhas do que precisava ser feito. Que a concepção do sistema orçamentário e tributário que está na Constituição foi ele quem fez. E que foi ele quem criou a política adotada até hoje pelo ministério da Saúde.


Sobre suas características pessoais, reconheceu que é tímido, "o que pode ser confundido com ser orgulhoso. Tenho muito pudor de entrar num restaurante e sair cumprimentando gente de mesa em mesa. Isso vai incomodar as pessoas, isso eu não faço".


Ligaram pela segunda vez da casa de Andrea Matarazzo, cobrando a sua presença.
, ele disse, olhando para o relógio. Eu o havia esperado por duas horas e meia.



A relação de Serra com a imprensa é paradoxal.

A identidade política dos grandes jornais e revistas é muito maior com ele do que com Lula, Dilma Rousseff e Marina Silva.

Ele tem boas relações com colunistas da imprensa escrita, apresentadores de rádio e televisão e diretores de redação.

Telefona para eles amiúde, faz perguntas sobre sua vida profissional e familiar, diz que está com saudades e pede conselhos.

E se dá muito bem com os patrões da grande imprensa.

Tudo isso se reflete no noticiário. Mas, por outro lado, Serra é um dos políticos que mais reclama da mídia, dos erros e injustiças dos quais é, ou imagina ser, vítima.


"Serra tem um grau de preocupação altíssimo com a imprensa", disse Otavio Frias Filho, diretor de redação da Folha de S.Paulo.

Ele não se lembrou de qualquer outro político que se compare a Serra nesse quesito. E deu dois exemplos recentes.

Citou primeiro a invasão da reitoria da Universidade de São Paulo. Antes de começar uma entrevista coletiva, Serra perguntou se Laura Capriglione, que havia escrito na Folha reportagens com críticas à atuação do governo, estava presente.

O questionamento, azedo, causou mal-estar entre os jornalistas presentes.


O outro episódio ocorreu em junho, quando Serra telefonou a Frias Filho querendo publicar um artigo no caderno Mais! sobre o aniversário da morte do jornalista Vladimir Herzog.

O diretor da Folha recusou porque não era inédito. Serra ligou novamente, insistiu e sugeriu outro texto. Frias Filho descobriu que esse também já havia sido publicado e, o que é pior, no concorrente, o Estadão.


Ao voltar do exílio, Serra se tornou editorialista da Folha e ficou amigo do dono do jornal, Octavio Frias de Oliveira.

"Por causa disso, Serra acha que a Folha bate mais nele, para se mostrar independente", disse Frias Filho. "Ele tem caprichos, se considera injustiçado, não gosta de ser contrariado, mas que governante não é assim?", indagou.


Verônica tem uma explicação sobre a atenção excessiva que o pai dispensa à imprensa: ele ainda não encontrou um porta-voz que o satisfizesse.

Serra também não tem chefe de gabinete, uma figura clássica dos porões da política. "Por isso, ele acaba fazendo o fronting", ela disse. "E se expõe demais, fica parecendo que ele quer se meter."

Ela citou o exemplo da inundação das marginais dos rios Pinheiros e Tietê, em setembro, por causa das obras de duplicação. Os jornais procuraram um ex-secretário de Marta Suplicy para comentar o caso. "Isso é justo? Ele não tem o direito de reclamar disso?", perguntou ela.


Rumo à casa de Matarazzo, no carro (onde havia um frasco de álcool em gel tamanho família, colocado no meio do assento dos passageiros), Serra disse que o carisma político é um mito.

"O carisma ganha eleição?",
indagou, retoricamente.

"Então, o Lula não tinha carisma quando perdia?

A imagem do Lula, há vinte anos, não era a de hoje. Era a de briguento, e agora é o cara, segundo o Obama."


No dia seguinte, no início da tarde, Serra participou da assinatura de um convênio na área de combustíveis.

Apesar de ter dormido apenas quatro horas, parecia bem-humorado. Aécio Neves havia sido entrevistado pela Folha de S.Paulo. "Não li", ele me disse.

Lembrei-me de uma antiga entrevista, na qual Serra dizia admirar a maneira como Franco Montoro lidava com a imprensa. Montoro era "imbatível" porque, quando perguntavam sobre uma notícia ruim, ele sempre dizia não ter lido.


Mas reclamou de a Folha, "curiosamente", não ter publicado uma frase sua dizendo que ele era o "plano B do Aécio e o Aécio era o plano B dele".

Nas últimas semanas, a chapa tucana puro-sangue na eleição de 2010 era dada como certa por vários colunistas. Serra não estava tão certo. "Uma coisa é o Aécio ser candidato à Presidência, outra é ele querer ser vice, e ele pode querer ser senador", disse.




Ele examinava uma pesquisa com eleitores do interior de São Paulo.

"Olha aqui", disse, apontando a página da cidade de Jundiaí. Diante da questão, "em qual desses candidatos você não votaria de jeito nenhum?", Dilma Rousseff chegava a 23%, seguida por Ciro Gomes com 18% e ele, Serra, com 10%.


Serra retomou o assunto que o havia deixado desconfortável na véspera:

"Andei pensando sobre aquilo de eu ser mais gestor do que teórico e não concordo. Acho que formulação e execução são inseparáveis."

Novamente se desculpou pela autorreferência, citou várias ações imaginadas e desenvolvidas por ele na prefeitura, no governo, em ministérios e na Constituinte.


A copeira e o mordomo entraram com bandejas de prata, que iam passando para que cada um se servisse. Serra colocou no prato um pouco de carne, legumes e um bolinho de batata com cogumelos. A porção era tão exígua que o fundo da louça ficou quase todo à mostra.


Perguntado como se definia politicamente, se era de direita ou esquerda, disse que o conceito ficou obsoleto:

"O governo Lula é de esquerda? Acho que não dá para falar isso. Virou uma conveniência eleitoral. Mas, com o significado do passado, eu certamente estaria mais à esquerda do que o pt. Política de desenvolvimento virou coisa de esquerda. Falar de política econômica se tornou quase subversivo."


Falava devagar e pausadamente.

Um pouco de molho manchou sua gravata vermelha. Ele apertou um botão que alerta os empregados na cozinha.

"Oi, você pode me quebrar um galho?

Caiu um molho aqui e se não tirar agora eu perco essa gravata. Obrigado", disse à copeira com a expressão compenetrada de quem assinava o Tratado de Tordesilhas.



Tudo com Serra é sério.

É raro ele rir quando um interlocutor conta uma história. Na rua, quando é cumprimentado por desconhecidos, tem sempre o mesmo gesto: tranca os lábios, como um bebê que não quer comer mais, e faz um movimento lento de cabeça, como se quisesse encostar o queixo no peito.

É um cumprimento daqueles que se vê em filmes sobre a corte de Luís xv, sem a dobra do joelho.

Aí, parece lembrar que algum marqueteiro o orientou a sorrir para os populares - e sorri timidamente.


Antes de voltar à discussão econômica, ele lembrou:




"A coisa mais absurda que você me disse foi que eu implicava com uma menina de perna fina chamada Helga. A única Helga que eu conheci na vida foi a Helga Hoffmann, do movimento estudantil, que não tinha perna fina e nunca morou no Chile. E falar que eu implicava com um sujeito porque era feio... Nunca teve isso. Isso não é real. Você não pode escrever isso."


Tentei argumentar e ele quis encerrar o assunto: "Se aconteceu comigo, e eu estou falando que não existiu, logo não é real. Se não é real, não deve ser publicado."

Lembrei um outro caso, que ele também negara ter ocorrido, e depois reconheceu que, de fato, havia acontecido, mas ele esquecera. "É, isso eu não lembrava", falou. Se ele podia ter esquecido uma coisa, podia também ter se esquecido da Helga e do feio.


Ele comentou a recente pregação de Fernando Henrique a favor da descriminalização das drogas.

Acredita que o ex-presidente só pode exprimir essa opinião porque está afastado da vida pública há quase dez anos.

"Um governante não pode e não deve exprimir uma opinião de médio e longo prazo que tenha um efeito imediato", disse.

"Tudo o que ele falar vai ser visto por outra ótica, a das ações dele no governo.

É por isso que um governante dificilmente pode ir a um debate. Tudo o que ele falar como pensador vai ser transposto para o cenário político.

Não se pode esperar que a mídia faça essa distinção."


Serra havia terminado. Apesar da microporção, ainda sobrava comida no prato. Entre um doce com goiabada e musse de maracujá, optou pelo segundo. Depois, ele partiu um pêssego que parecia apetitoso, mas quando foi cortado estava todo marrom por dentro.

"Antigamente não tinha fruta bonita por fora e podre por dentro: isso é a revolução verde", disse.


Perguntei quais seriam os temas da campanha do próximo ano, e ele respondeu: a folha de serviços prestados de cada candidato, o peso do ataque dos adversários e, em terceiro lugar, aspectos subjetivos, como a imagem pessoal.


Em 2002, durante a campanha, perguntaram a Lula o que ele queria para o Brasil.

"Quero que todo brasileiro tenha dinheiro para tomar uma cervejinha depois do trabalho", ele respondeu.

Enquanto tentava espetar uma rodela de beterraba, Serra deu sua resposta à mesma questão: "Quero que os jovens tenham emprego e perspectiva de futuro."


E o que fará se perder a eleição?

"Não vou discutir isso", disse, balançando a cabeça. "Isso é sofrer por antecipação. Não sou masoquista. Não sei nem se vou ser candidato e já vou ficar pensando no que fazer se não ganhar?"


Serra pretende decidir se concorrerá ao Planalto entre janeiro e março de 2010. Seu critério será bem simples: se tiver apoio político e boa colocação nas pesquisas, será candidato.


Houve no final do almoço uma conversa sobre amizade e amor.

Ele se lembrou do escritor argentino Jorge Luis Borges, que dizia que a amizade era mais gratificante porque dispensava a convivência, enquanto o amor era escravo e possessivo.

Por quase dez minutos, Serra falou sobre Borges, um dos escritores que mais admira.

Citou frases, ilustrou situações que seriam perfeitamente definidas por um verso ou um pensamento de Borges.

Perguntou se alguém à mesa conhecia o poema "Fragmentos de um evangelho apócrifo" e disse que, se alguém quisesse saber tudo a respeito dele, bastava ler o texto. Depois, ele consertou: "Eu assino embaixo de quase tudo."


Quando se levantou, constatou que o molho tinha espirrado também na camisa. Serra ficou parado, com os dois braços esticados, como se estivesse sendo revistado no portão de embarque do aeroporto, e perguntou: "E a gravata? Será que limparam? Eu gosto daquela gravata."


No dia seguinte pela manhã, ele telefonou e falou de novo dos "Fragmentos de um Evangelho Apócrifo": "Sou contra a parte que fala de matar, essas coisas. Mas o resto tem tudo a ver comigo."


No fim da tarde, chegou um e-mail de Serra:

"Se você suprimir os versículos 10 e 17, o Evangelho do jlb é quase perfeito. Alguns deles eu devo ter dado a ideia ao Borges em outra encarnação."




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