O
programa “Saia Justa”, do GNT, convidou a empresária Paula Lavigne,
presidente (!) do grupo “Procure Saber” e ex-mulher de Caetano Veloso,
para falar sobre a polêmica das biografias. Quem assistir ao programa
verá que esta senhora não sabe o que fala. A sua ignorância só não
supera a sua arrogância e a sua truculência.
Entre outras bobagens,
tratou como valores equivalentes um artigo do Código Civil, o 20, que
permite que biografados ou seus familiares interditem um livro, e os
artigos 5º e 220 da Constituição, que asseguram a liberdade de expressão
e vetam qualquer forma de censura. Ora, só existe uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade no STF porque se aponta justamente a
inconstitucionalidade desse Arrigo 20. Se assim decidirem os ministros
do Supremo, fim de papo. Para ser didático, dona Paula: a Constituição
pode declarar sem efeito um dispositivo do Código Civil, mas um
dispositivo do Código Civil não pode declarar sem efeito uma garantia
constitucional.
Entendeu ou quer um desenho?
O debate
prosseguia. Paula tentava desesperadamente arrumar um argumento. Dizia
que ela e seu grupo estavam injustamente sendo acusados de censores, sem
conseguir explicar, no entanto, por que aquilo que defendem não é,
afinal de contas, censura. Pouco se lhe dá que a tal lei impeça, como
tem impedido, de se contar parte da história do Brasil e que inexista
restrição parecida em qualquer democracia do mundo. E daí? O Brasil
atrasado pode lhes parecer um bom lugar quando se trata de defender o
que consideram seus próprios interesses.
A
jornalista Barbara Gancia é uma das integrantes do “Saia Justa”. Fez o
que as pessoas razoáveis fazem nas democracias. Combateu a censura,
citou os dispositivos constitucionais e lembrou que existem leis para
punir abusos. Sem saída, Paula Lavigne apelou.
— Barbara, você é gay assumida, né?
— Sou.
— Qual é o nome da sua namorada?
— Marcela.
— Ela não vai se sentir bem vendo eu
perguntar isso, é disso que estou falando, você não está entendendo na
teoria e agora viu na prática como é ruim ter a privacidade invadida!
Retomo
Paula Lavigne é vulgar e preconceituosa. E
o é, como diz uma das minhas filhas, num “nível novo”, que pode escapar
a uma análise mais ligeira. Vamos lá. Agora parte da minha biografia:
Barbara é minha amiga há 21 anos. Nunca escondeu o que não tinha de ser
escondido. Nesses anos, jamais vi alguém, por mais que a detestasse ou
que estivesse furioso com suas opiniões, recorrer à sua sexualidade para
tentar vencer o debate, como se fosse um argumento eficiente. Querem a
evidência incontornável de que se tratou de preconceito? É simples: se
Barbara fosse heterossexual, o diálogo seria impossível, não é?
Imaginem:
— Barbara, você é heterossexual assumida, né?
— Sou.
— Qual é o nome do seu namorado?
— Paulo.
— Ela não vai se sentir bem vendo eu
perguntar isso, é disso que estou falando, você não está entendendo na
teoria e agora viu na prática como é ruim ter a privacidade invadida!
É
asqueroso! No mundo de dona Paula Lavigne, os gays devem ser menos
livres para ter opiniões do que os heterossexuais, ou ela logo quer
saber qual é o nome do “namorado” ou da “namorada”… O mais patético é
que Barbara respondeu o que lhe foi perguntado sem constrangimento, mas
Paula insistiu em ver ali a suposta violação incômoda de uma intimidade —
violação que não havia porque não se cuidava de nenhuma informação
secreta. Mas ainda não cheguei ao fundo do pântano ético desta senhora.
Digamos,
só para efeitos de pensamento, que a homossexualidade de Barbara fosse
um segredo guardado a sete chaves, bem como o nome da sua namorada. Ora,
quem é que estava a falar no programa como a guardiã do “direito à
intimidade”? Entendo. Paula só estava tentando ser didática e sagaz.
Não é a primeira vez
Trinta anos depois, essa gente aprendeu muito pouco. Em 1983, furioso com uma crítica que
Paulo Francis lhe fez, Caetano, ex-marido de Paula Lavigne e um dos
entusiastas da censura, chamou o jornalista de “bicha amarga” e “boneca
travada”. Nos recentes embates que tive com ele, lembrei a baixaria. Caetano tentou se explicar,
e a emenda saiu bem pior do que o soneto. Segundo disse, a parte
negativa da caracterização era “travada”, não “bicha”. Ah, bom! Paula
Lavigne acha que Barbara Gancia não poderia jamais ter aquela opinião
sendo gay. E Caetano acha que uma bicha só é digna se for “destravada”.
Poderia ser dito de outro modo: “Já que é bicha, que seja destravada”.
Não sei se ele tem exigências também voltadas aos heterossexuais.
O mesmo
Caetano, descontente com um texto de Mônica Bergamo, colunista da Folha,
sobre autorização para Maria Bethania captar patrocínio pela Lei
Rouanet, resolveu especular sobre a vida privada da jornalista,
acusando-a de “parceira extracurricular” de um colega. Escrevi sobre o despropósito.
A Lei Rouanet é um instrumento público de fomento à cultura. Saber quem
tem e quem não tem acesso à vantagem é de interesse do conjunto dos
brasileiros. Mas o cantor tomou a coisa como pessoal. E ainda escreveu: “Pensam o quê? Que eu vou ser discreto e sóbrio? Não. Comigo não, violão”.
Em suma: Caetano acha que não precisa “ser discreto e sóbrio” com a
vida de pessoas privadas, mas quer uma lei que censure a biografia de
pessoas públicas.
Num embate recente com Mônica no Twitter, Paula Lavigne mandou ver esta delicadeza:
Ela se
desculpou, e parece que a jornalista aceitou as desculpas. Não estou
aqui a tomar as dores de ninguém. Mônica sabe se defender — assim como
Barbara. Estou é evidenciando um estilo.
Sei o
quanto me custa de aporrinhação e de xingamentos os mais estúpidos as
críticas que faço à chamada “lei que pune a homofobia”. Trata-se, em
muitos aspectos, de mais uma agressão à liberdade de expressão sob o
pretexto de defender uma minoria. Precisamos é que as leis que existem
para punir todas as formas de agressão sejam devidamente aplicadas. E
com celeridade — inclusive as que coíbem os crimes contra a honra.
O que me
espanta ao relatar esses casos é ver a ligeireza com que esses
“descolados” — que jamais serão chamados de “homofóbicos” — podem
recorrer à sexualidade desse ou daquele ou a supostos aspectos da vida
privada de desafetos para tentar vencer um debate sobre temas que são de
interesse público.
Se há coisa que
não me interessa — e desconfio que interesse a bem pouca gente — é a
vida venturosa de Caetano Veloso, de Djavan ou de Chico Buarque.
Espantoso é que esses senhores, sob o pretexto de preservar a sua
intimidade, defendam uma lei já tornada obsoleta pela Constituição, que
permite, e isto é inegável, até a censura prévia.
Paula
Lavigne, no seu estilo sem limites, em conversa com O Globo, afirmou que
Barbara teria pedido ao GNT que cortasse trechos do programa.
Estranhei. Telefonei para Barbara.
— Você pediu isso?
— Reinaldo, eu vou fazer uma cópia da mensagem que enviei ontem para a Mariana Koehler, que é a diretora do Saia Justa.
Minutos depois, chegava ao meu celular a mensagem que Mariana recebeu na manhã de quarta-feira.
Assim:
“Bom dia, flor:
Não se preocupe comigo na hora de
editar, tá tudo tranquilo, faça o que for melhor pro programa. Confio
100% no seu bom senso. Manda bala e vamos em frente!”
É MAIS SEGURO PARA A HUMANIDADE QUE PAULA LAVIGNE TENTE CENSURAR BIOGRAFIAS. IMAGINEM SE ELA FOSSE UMA BIÓGRAFA…
Encerro
lembrando que esses patriotas costumam reclamar ainda da imprensa
brasileira. Com raras exceções, o jornalismo que se pratica no Brasil
preserva, sim, a intimidade de personalidades públicas — inclusive dos
artistas. É claro que, de vez em quando, aparecem um Lula ou outro para
protestar.
O agora ex-presidente ficou furioso quando a imprensa
noticiou que a Gamecorp, empresa de Lulinha, um de seus filhos, recebeu
um aporte de R$ 5 milhões da então Telemar. Segundo o petista,
tratava-se de “assunto privado”. Errado! A Telemar era detentora de uma
concessão pública e tinha como sócio o BNDES. Se ela dá dinheiro para a
empresa do filho do presidente da República, a notícia é do interesse de
todos os brasileiros.
Lula,
Chico Buarque e Caetano Veloso acham que biografia boa é biografia
autorizada. Estão a um passo de achar que jornalismo bom é jornalismo
autorizado.
Se não é assim, Paula Lavigne logo pergunta:
— Você é gay, né?
Texto publicado originalmente às 5h26