Por Reinaldo Azevedo
O papa
Francisco esteve no Brasil e perdeu uma grande oportunidade:
encontrar-se com Ilona Szabo (foto), a carinha mais bonita da militância
em favor da descriminação das drogas. E também a mais despudoradamente
arrogante e pretensiosa. Começo a temer pelos pilares que sustentam o
Trono de São Pedro. Ilona tem amigos poderosos. Chegar ao Sumo Pontífice
não é impossível. No dia em que isso acontecer, ela está convicta, a
Santa Madre não será mais a mesma. Mais de dois mil anos de tradição
sucumbirão à moça que fala letão. Do que estou a tratar? Vocês
entenderão.
Li com
atraso, confesso — a coisa havia me escapado —, mas li. Leitores me
enviaram o link no mesmo dia. Não dei muita bola porque já conhecia a
personagem. Mas a insistência era grande e acabei cedendo. No domingo, o
Globo publicou um perfil da
“cientista política” Ilona Szabó. Ilona é aquela moça que, no programa
“Roda Viva”, em vez de fazer perguntas a Ronaldo Laranjeira, na
entrevista que o psiquiatra concedia ao programa Roda Viva, houve por
bem desqualifica-lo, apelando a generalidades, grosserias e a uma
arrogância de que só a ignorância satisfeita de si é capaz. Por quê?
Laranjeira é contra a descriminação das drogas e coordena, em São Paulo,
o trabalho de combate ao crack. Ilona, 35 anos, é favorável. Mais do
que isso: é uma militante muito bem-sucedida da causa. Além de chefona
da Rede Pense Livre, que luta por essa causa (com amplo financiamento),
coordena a Comissão Global de Política sobre Drogas e Democracia, o
principal lobby pró-descriminação, que tem entre seus membros algumas cabeças coroadas da sociedade brasileira: artistas, empresários, celebridades e, como é notório, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Acho que
nunca li um texto como o que o Globo publicou. Há uma diferença entre
perfil e panegírico; entre uma abordagem simpática ao perfilado e a
mitificação. Que Ilona tenha uma longa vida, mas, a acreditar em O
Globo, ela já poderia entrar para a história — ou para o Olimpo.
Distorção logo no primeiro parágrafo
Laranjeira, um pesquisador de reputação
internacional, um cientista, é hoje o principal alvo do lobby em favor
da descriminação das drogas. E ele já apanha no primeiro parágrafo do
texto do Globo, assinado por Fernanda Pontes. Leiam. Volto em seguida.
“A
cientista política Ilona Szabó, de 35 anos, e o psiquiatra e
especialista em dependência química Ronaldo Laranjeira participavam de
um acalorado debate no programa “Roda Viva”, da TV Cultura, exibido em
maio, sobre política de drogas no Brasil. Os dois não se entendiam.
Ilona, que é diretora da Rede Pense Livre, cuja principal bandeira é a
descriminalização das drogas, aproveitou o intervalo para dizer a
Laranjeira que ele estava “mal informado” e usava dados
“desatualizados”. O psiquiatra retrucou: “Cresça e apareça, menina. Quem
você pensa que é?”.
Voltei
Ditas as coisas assim, fica parecendo que
Ilona é só uma moça em busca do bem, e Laranjeira, um grosseirão. O que o
texto não informa é que o psiquiatra era O ENTREVISTADO — e Ilona
estava lá para fazer perguntas. Em vez disso, ela resolveu desqualificar
o convidado. Não estava sozinha nesse esforço. Dos cinco
entrevistadores, quatro eram fanáticos defensores da descriminação. É
preciso ver aquele espetáculo grotesco para crer. Enquanto ele
trabalhava com dados, números, pesquisa científica, seus adversários (é
essa a palavra adequada) respondiam com ideologia, achismo, retórica
supostamente libertária. Transcrevo, por exemplo, trecho de uma
intervenção de Ilona no programa (à época, escrevi dois posts a respeito), que, no texto do Globo, é retratada como aquela que deixaria Palas Athena, além de Cícero, no chinelo:
ILONA: Aí
você me preocupa um pouco porque tem alguns conceitos bem confusos, né?
Eu queria oferecer até, eu sou membro da Rede Pense Livre, uma rede que
foi criada para aprimorar esse debate, e eu vou fazer, na verdade, um
resumo dessa discussão, colocando vários dados que eu acho que são
importantes para a discussão, à disposição no nosso blog, então eu acho
que, com fontes, explicando, acho que essa conversa não vai dar para
aprofundar, mas eu acho que é importante, porque a gente está
confundindo muitas coisas aqui. Eu acho que, partindo do ponto de que,
hoje, se a gente for encarar a realidade; se, de fato, a gente não
quiser tapar o sol com a peneira, as drogas são muito disponíveis para
os adolescentes; hoje, eles estão totalmente desprotegidos, compra-se em
qualquer lugar, né? Nós não temos uma educação honesta, infelizmente,
não temos educação honesta sobre drogas. A gente mente, a gente afasta. O
modelo de criminalização não deixa que o usuário procure o sistema de
saúde pública, então, se o senhor…
Retomo
Palas Athena talvez se expressasse com
menos anacolutos, mas compreendo. Consta que a moça é fluente até em
letão — língua que teria aprendido em quatro meses; no quinto, já dava
palestras nesse idioma —, e é possível que a sintaxe letã tenha deixado
algum resquício em seu discurso. Traduzida a sua fala para a o
português, esta senhora quis dizer o seguinte:
a) o entrevistado trabalha com conceitos confusos:
b) se ele quiser aprender mais, basta acessar a página de sua ONG na Internet;
c) quem é contra a descriminação das drogas está tapando o sol com a peneira;
d) quem se opõe a esse tese não está sendo honesto.
Eis Ilona
no melhor da sua forma. Afirmar que o usuário não procura tratamento no
Brasil porque tem medo, uma vez que as drogas são ilegais, vênia máxima,
é de um desonestidade intelectual espantosa. Por dois motivos
principais: a) quando o sistema de saúde está aparelhado para dar atendimento ao viciado, não há qualquer notificação à polícia; b)
infelizmente, no mais das vezes, esse sistema não está ainda preparado
para receber o viciado. A afirmação de Ilona é simplesmente falsa.
Quanto a oferecer a um especialista em dependência química as
“verdadeiras informações”, que seriam as colhidas por sua ONG, dizer o
quê? Isso e café pequeno perto do que Ilona é capaz.
O papa
Alguns leitores que não leram a reportagem
do Globo vão achar que surtei, mas juro que o que vai abaixo está
escrito lá, com todas as letras. O panegírico de página inteira
publicado pelo jornal termina assim (em vermelho):
Ilona não se deixa abater. É
enfática ao dizer que poderia ter convencido até o Papa Francisco, em
sua visita ao Rio, a ser favorável à descriminalização das drogas: “Eu
tenho certeza de que, se tivesse conversado com o Papa, ele não seria
contra. Ele, na verdade, ainda não entendeu o que é a descriminalização
das drogas de fato. Disseram a ele que é ‘liberou geral’, mas é mentira.
Não defendo nada que vá ferir valores cristãos, muito pelo contrário.
Eu luto pela vida.”
Voltei
Viram só? Ilona, com a sua estupefaciente
cultura, inclusive a religiosa, acredita que Francisco é um senhor cujas
escolhas têm importância apenas na esfera privada. As opiniões
expressas pela autoridade máxima da Igreja Católica seriam fruto do
preconceito e da desinformação — a mesma acusação que ela fez ao
psiquiatra Ronaldo Laranjeira. Encantadora essa moça! Quem pensa direito
concorda com ela; se não concorda, então não pensa direito.
Sobre a
questão realmente substantiva, que é a militância de Ilona, é o que
existe de mais notável no perfil publicado pelo Globo. Creio que uns 90%
do texto são dedicados a exaltar as qualidades ímpares da moça —
aquelas que deixam Palas Athena, a deusa dos olhos glaucos, morta de
inveja. Acompanhem (em vermelho). Os entretítulos são meus.
Ela é muito ocupada e o mundo quer saber o que pensa:
Ali estão inscritos projetos,
seminários e palestras de temas variados a serem realizados até 2015 em
países da Europa, da África e da América do Sul.”
Desde a juventude, era uma moça invulgar:
Estudava no tradicional Colégio
Anchieta e na adolescência surpreendeu a todos ao escolher a Letônia, um
país pobre da antiga União Soviética, como destino para um intercâmbio
de um ano.
Como num filme
A exemplo do médico Nicholas
Carrigan, do filme “O Último Rei da Escócia”, ela também pegou o mapa e
escolheu um lugar qualquer. Assim nascem os mitos.“Eu já falava inglês e
não me interessava ir aos Estados Unidos. Aí peguei o atlas e vi que
havia muitos países interessantes do Leste Europeu para conhecer. Minha
mãe ainda falou: “Pensa direitinho, lá é muito frio”. Mas fui mesmo
assim — diz ela, que é filha de um engenheiro naval e uma jornalista.
Saliente genialidade
Além do frio intenso, Ilona
enfrentou um país em transição. Nas ruas, havia dois idiomas: o russo e o
letão, que aprendeu em quatro meses. A pedido de sua “mãe” do
intercâmbio, dava palestras em letão para estudantes de origem russa,
mostrando que era possível aprender o idioma facilmente.
A iluminação
“O pulo do gato”, como a própria
define, aconteceu quando leu um artigo do antropólogo inglês Luke
Dowdney, fundador da ONG Luta Pela Paz, em que comparava crianças
soldados a crianças do tráfico: “Aquele artigo me tocou profundamente.
Estava decidida: ia encontrar aquele homem de qualquer jeito.”
A determinação
Após a conclusão do mestrado [na
Suécia] e de um curso de pós-graduação que resolveu emendar na Noruega,
os dois foram finalmente trabalhar juntos no Viva Rio, que, na época,
iniciava uma campanha nacional de desarmamento. “Ela era muito
interessada e comprometida com o tema, mostrou isso desde o início e, em
duas semanas, o Rubem César Fernandes (presidente do Viva Rio) puxou a
Ilona para o grupo dele “, brinca Luke.
O que pensa Fernando Henrique
O ex-presidente não mede elogios à
amiga Ilona e sua “invejável habilidade para organizar redes pela
internet”: “Em poucas palavras, a competência técnica, a devoção ao
trabalho e a capacidade organizacional de Ilona a fazem uma das mais
brilhantes profissionais de sua geração.”
Uma linhagem de gênios
Ilona faz jus à fama. Fala cinco
idiomas: inglês, espanhol, francês, russo e letão (os dois últimos ela
diz que estão meio “esquecidos”). Depois abre parênteses, para dizer que
isso “não é muito”, já que a sua mãe fala sete línguas.
Não é só inteligente…
Ilona também chama atenção pela sua beleza. E tem resposta para tudo.
O amor
“Sou casada com um gringo, ele é
canadense e nos conhecemos numa conferência no Panamá. É acadêmico e
dirigia uma ONG sobre armas e violência. Depois de um relacionamento à
distância, eu o importei para o Brasil. Hoje trabalha como diretor de
Pesquisa do Igarapé, nada sai daqui sem passar por ele.”
Salmão com aspargos
O marido gringo é Robert Muggah,
que também é um “ótimo cozinheiro” e recentemente fez salmão com
aspargos para o amigo Fernando Henrique.
Amante da cultura popular
“Na verdade, sinto muita falta do
meu forró pé de serra, adoro Gonzagão e Dominguinhos. Já coloquei até
meu marido gringo para fazer umas aulas — diz, às gargalhadas.”
Personalidade singular
Ilona também tem umas contradições
curiosas. Considera-se uma glutona, mas na hora de almoçar escolhe
peixe e legumes grelhados, feitos na sede do instituto sob a supervisão
da professora de ioga (“ela reclama quando tem muito creme”, diz).
Apesar de ter morado em países gelados, odeia frio.
Caminho para o encerramento
Como diz a reportagem do Globo, ela é
mesmo curiosa! Superiormente generosa, resolve ser benevolente com o
psiquiatra Ronaldo Laranjeira, mas volta ao ataque:
“Quero
deixar bem claro que não tenho nada contra o doutor Laranjeira, só
achei que ele prestava um desserviço ao divulgar dados desatualizados.”
Atenção!
Nem no Roda Viva nem na reportagem do Globo, Ilona disse que “dados
desatualizados” são esses. Ela, sim, mistifica ao viver exibindo por aí o
suposto sucesso da descriminação das drogas em Portugal. Sucesso?
Aumentou o consumo (à diferença do que se propaga), aumentou o tráfico, e
aumentou a violência.
A
reportagem, claro!, para mostrar que está atenta ao “outro lado”, vai
ouvir Laranjeira. Inadvertidamente, o médico decidiu falar: “É jovem e
muito articulada, mas tem argumentos científicos inconsistentes. No
fundo, é uma ideóloga”.
Considerando
que Laranjeira está logo no primeiro parágrafo do texto e que se trata,
como já disse, de uma panegírico que assevera a beleza, a genialidade, a
precocidade, a fluência e as boas amizades de Ilona, a coisa poderia
parar por aí. Mas quê… Vai que um ou outro leitor acreditem no doutor…
Vem, então, aquela história do papa, que arremata o perfil do mito.
Transcrevo mais uma vez:
Ilona
não se deixa abater. É enfática ao dizer que poderia ter convencido até
o Papa Francisco, em sua visita ao Rio, a ser favorável à
descriminalização das drogas: “Eu tenho certeza de que, se tivesse
conversado com o Papa, ele não seria contra. Ele, na verdade, ainda não
entendeu o que é a descriminalização das drogas de fato. Disseram a ele
que é ‘liberou geral’, mas é mentira. Não defendo nada que vá ferir
valores cristãos, muito pelo contrário. Eu luto pela vida.”
Encerro mesmo
Quer lutar em favor da morte com dados
desatualizados, leitor? É só discordar de Ilona. É claro que essa
historia, meus caros, não se encerra com o surgimento deste novo mito. A
deusa que desbancou Palas Athena tem uma causa que está sendo debatida
no Congresso. E seu discurso — e o dos que pensam como ela — se assenta
numa mentira essencial, que não é mera questão de escolha ou de juízo de
valor. Ainda hoje, volto ao assunto.
Debesu Dievs!
Quer dizer
“Deus do Céu!”. Em letão (vi no dicionário… Sei lá se é isso mesmo!). É
uma pena Lima Barreto já ter morrido. Depois de “O homem que falava
javanês”, temos “A mulher que fala letão”. E que, acima de tudo,
argumenta em letão, embora a gente seja tentado a achar que fala
português.
20/08/2013