A voz do derrotado
O segundo turno na eleição presidencial de 2010 não derrotou apenas as pretensões megalomaníacas do PT e os arroubos cesaristas de Luiz Inácio Lula da Silva.
Também dizimou a reputação de boa parte do colunismo político.
Os inocentes se quedaram reféns dos institutos de pesquisa e escreveram bobagens às pencas.
Uma hora me dá na veneta, e vou relembrar o que andaram pontificando alguns valentões e valentinhos.
Os nem tão inocentes assim usavam os números para endossar preconceitos que precediam qualquer pesquisa. Como a história só é velha porque feita de fatos novos, as pitonisas do oficialismo quebraram a cara.
Como a realidade estourou pela culatra, nas suas fuças, então decidem ser juízes do fato histórico, separando o virtuoso do que lhes parece vicioso. Quase sempre, o vício — ora vejam! — está com a oposição, e a virtude, com o governo.
O mais divertido da turma é, sem dúvida, Elio Gaspari.
Ele tem a pretensão de ser, assim, um conselheiro dos jovens. Escreve como quem cantasse: “Esses moços, pobres moços, ah, se soubessem o que eu sei…” E, no entanto, ele sabe bem menos do que sugere a empáfia do estilo. Induziu muita gente a erro.
Não cansou de matar a candidatura do tucano José Serra ainda no primeiro turno. Subjacente a seus prognósticos estava a tese da emergência das massas ao processo político, o que o PSDB não teria percebido, enquanto “Nosso Guia”, vocês sabem, com seus dons premonitórios e sua natural sensibilidades etc e tal…
E, no entanto, o segundo turno está aí.
Qualquer que seja o resultado da eleição, uma coisa dá para prever: será uma peleja dura. A julgar pelo nervosismo dos petistas, certa histeria mesmo, eles não estão muito certos de nada.
As tais “massas” que ascenderam ao processo político, aquelas que tanto encantavam Gaspari, começaram a emitir alguns recados. O diabo é que, para desaire do nosso pensador, dizem coisas que ele não gostaria de ouvir.
Vocês sabem: povo bom é aquele cujo progressismo combina com as ambições do analista. Se ele começa a emitir mensaagens que a suposta boa consciência repudia, o que parecia virtude começa a ser vício, o que parecia ser manifestação de vitalidade começa a ser tratado como expressão de uma doença social.
O nome disso?
Vigarice intelectual.
Escreve Gaspari em sua coluna hoje:
Contumaz retardatário, José Serra conseguiu bater todas as suas marcas. Chegou com 46 anos de atraso à Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que juntou 200 mil pessoas no centro de São Paulo manifestando-se contra o governo de João Goulart.
A “Marcha da Família” foi a maior manifestação popular de 1964. Doze dias depois de sua realização, Goulart foi deposto.
Segundo o cônsul americano na cidade, “quase todas as famílias das classes médias e alta estavam representadas, com pequena participação das classes mais baixas”.
Quem deu musculatura à manifestação foram organizações religiosas e líderes políticos. Anos depois, as senhoras que lideraram a marcha tornaram-se um estorvo para os generais.
Vejam vocês.
Eu até acho que, em 1964, Serra estava um tantinho no lugar errado — no comício da Central do Brasil por exemplo, o que é exaltado em sua campanha, uma desnecessidade.
Mas não vou escarafunchar isso agora.
O que posso dizer em homenagem à biografia do valente colunista é que, enquanto o agora presidenciável tucano estava exilado — havia uma ordem de prisão contra ele no Brasil, e surgiu até um bilhete com instruções para eliminá-lo no Chile —, Gaspari estava por aqui mesmo, cantando as glórias do regime. Às quatro ditaduras que compõem a sua obra sobre o período — Envergonhada, Escancarada, Derrotada e Encurralada —, ele poderia acrescentar uma quinta: A Ditadura Aplaudida, que seria composta apenas de textos do próprio Elio Gaspari.
Verdade ou mentira?
E é ele quem vem falar agora, nesse tonzinho moralista, da Marcha da Família? Há várias impropriedades na alusão. Em primeiro lugar, aquela manifestação era, sim, popular, goste o neocompanheiro ou não. E nada tinha de despropositada.
O governo João Goulart havia levado o baguncismo para o palácio. O receio de que estivesse tramando um autogolpe estava ancorado em evidências. Mas deixo essa coisa pra lá.
A segunda impropriedade é atribuir àquele protesto um caráter elitista e associá-lo, então, à manifestação de agora de milhões de brasileiros que repudiam, por exemplo, o aborto.
Se, naquele caso, segundo Gaspari, a elite estava na rua, em 2010, com clareza insofismável, quem fala é o povo ao qual o colunista já começa a se apegar.
De resto, eu lhe proponho um desafio: ele convoca uma marcha pró-aborto, e eu convoco uma contra. Vamos ver quem vai reunir brasileiros com a melhor dentição e com a pele mais bem-tratada. Não existe banguela de esquerda, não! As convicções homicidas dos esquerdistas (todas para salvar a humanidade, claro!), por incrível que pareça, se formam mesmo é no conforto.
Vai ver é alguma estranha proteína do sucrilho…
Gaspari — o derrotado da eleição de 2010, mesmo que Dilma vença — queria ver Serra discutindo a questão cambial e a supervalorização do Real.
Entendo!
Ele queria que o tucano disputasse a eleição só para ter razão, não para vencer. Não que Gaspari, ele próprio, fosse elogiá-lo por isso. Continuaria com a sua metáfora haurida da construção civil para tratar da luta de classes: os tais andares de baixo e de cima…
O companheiro gostaria de ver a oposição, no máximo, como uma espécie de ombudsman do governo Lula. Não deixa de ser um avanço: durante a ditadura militar, ele simplesmente a achava desnecessária.
Quem não tem memória ou arquivo que caia no truque.
Eu tenho os dois.
E o mau hábito de chamar as coisas pelo nome.
17/10/2010
0 comentários:
Postar um comentário