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sexta-feira, 16 de julho de 2010

Bruno e a lei



Por Francisco Bosco
O Globo

Muitos conhecem o caso Doca Street, que abalou o Brasil nos anos 70. Doca, um rico paulista, de 42 anos, se apaixonou por Angela Diniz, “a pantera de Minas”, com quem vivia uma relação explosiva. Numa de suas brigas, após ela ameaçar deixá-lo, Doca sacou uma arma e assassinou a mulher que amava. Seu julgamento contém o código cifrado da sociedade brasileira da época. Acabou sendo condenado a 15 anos de prisão. Décadas mais tarde, lançou um livro contando sua versão da história. Numa entrevista, perguntado sobre que lição toda aquela tragédia lhe deixara, respondeu: “Nunca tenha uma arma à mão.”

Quando pessoas sem antecedentes criminais cometem um crime e são descobertas, em geral demonstram culpa, vergonha e remorso. Cobrem seus rostos ao serem levadas para depor e esquivam-se do olhar da câmera, pelo qual sentem receber o olhar de toda a sociedade que os reprova. Bruno, o goleiro, não. Em nenhum momento ele demonstra qualquer sinal de culpa ou vergonha. Não esquiva o olhar das câmeras, não cobre o rosto. De roupa laranja de presidiário, passeia altivo, de cabeça erguida. Volto então a Doca Street. A sua frase remonta àquele exato instante em que o destino de uma pessoa sofre um brusco e inesperado desvio. Por conta de um ato irrefletido, toda uma trajetória estará perdida, condenada à prisão, ao estigma social, à culpa irremissível. Dar-se-ia tudo para poder voltar no tempo até aquele maldito instante e evitar que o crime fosse cometido.

Bruno, não. O que há de inquietante em sua expressão é a placidez. Não há em seu rosto a contorção trágica dessa reviravolta sem volta do destino. É como se nada de inesperado e terrível tivesse acontecido. Ele segue em frente, como se esse fosse o caminho esperado. Não há o desespero de quem daria tudo para voltar no tempo. O tempo que está à sua frente parece ser o mesmo que estava às suas costas. Não houve ruptura entre origem e destino. O que significa isso?

É desconfortável, mas inevitável dizê-lo: Bruno é provavelmente um psicopata. A ausência de culpa e a frieza o indicam, tanto quanto a orfandade, a criação a que deve ter faltado o que a psicanálise chama de “função paterna”. É por meio dessa função que a criança assimila a restrição que lhe impõe o Outro. No complexo de Édipo, o pai interdita ao filho o gozo pleno da mãe. É por esse lance que as pessoas consideradas normais se tornam neuróticas. A neurose, isto é, a normalidade, é o pacote que inclui a assimilação de uma lei, o reconhecimento dos direitos do outro, a necessidade de controlar as próprias pulsões. E, quando da infração da lei, a culpa; e, quando de sua descoberta, a vergonha.

Mas passemos à dimensão mais abrangente do problema. Num depoimento à polícia, Eliza Samudio contou que Bruno a teria ameaçado com as seguintes palavras: “Eu não quero esse filho e sou capaz de tudo para você não ter essa criança. Você não me conhece e não sabe do que sou capaz, pois eu venho da favela.” As favelas, no Rio pré-UPPs, são o lugar em que o Estado falta. O Estado, ali, não exerce a lei, vigorando uma situação bárbara de poder do mais forte. A frase de Bruno remete a essa origem: venho de um lugar em que não se reconhece a lei, portanto, se eu fosse você, me obedecia. Eu sou mais forte que você, e, no lugar de onde venho, isso me autoriza a fazer o que quiser com você. Era essa a mensagem.

O nó da formação do Brasil é a sua relação com a lei. Isso se deixa ler nos documentos e nas interpretações de nossa História. A carta de Caminha termina com um pedido de favor. O homem cordial revela a incapacidade de regular as relações sociais por meio do princípio universalizante da lei. O patrimonialismo é o patrimônio público destituído da lei que asseguraria seu usufruto comum. A lei é nosso ponto cego.

Nesse republicanismo precário, muitos pobres percebem a lei não como aquilo que lhes assegura os direitos, mas como aquilo que os oprime e garante o direito dos ricos. A polícia, nas favelas, é a que invade e mata. Os políticos são os que estão autorizados (pela “lei”) a roubar e sair impunes. Se um pobre consegue ascender socialmente, muitas vezes ele sentirá que isso ocorreu não por causa da lei, mas apesar dela. Ao enriquecer, ele se sentirá acima da lei, assim como antes estava abaixo dela. Ele passa de uma identificação com o oprimido a uma identificação com o opressor. Num país verdadeiramente republicano, qualquer cidadão, pobre ou rico, deve se identificar com a lei, que é igualitária. Mas, aqui, a lei é instrumento que oprime ou permite oprimir. A consequência disso é tanto a grana obscena escondida na meia quanto o sequestro e assassinato de uma jovem.

O Brasil precisa de legalidade. Mas, além de uma reflexão honesta sobre os benefícios civilizatórios da informalidade (eles existem), é preciso entender que legalidade sem civilidade é inútil, apenas reproduz o status quo. De nada adiantam choques de ordem, blitzen de Lei Seca, se no centro da Lei, de onde ela deveria emanar, ela não é cumprida. Assim, o cidadão comum é multado e até preso se dirigir alcoolizado, mas o cidadão especial (como o Sarney de Lula) pode assaltar os cofres públicos à vontade. Essa situação abre um fosso entre a legalidade e a civilidade. A lei, então, continua a ser vista como um instrumento de opressão do cidadão comum; só que agora disfarçada de legalidade.

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