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sábado, 2 de junho de 2012

"Escrevo páginas para os que têm sede de justiça e para os que apreciam a lógica com método.”


Aos meus leitores, que me ensinaram a ser uma pessoa melhor!




Por Reinaldo Azevedo

Há muita coisa quente para ler na VEJA desta semana. Logo mais, comento algumas. O texto que segue, deste escriba, está na edição que começa a chegar hoje aos leitores e que já está nas bancas. Anuncio também o lançamento do meu quarto livro.
*
O pão nosso da alegria


Neste mês, o blog que mantenho na VEJA Online completa seis anos. A página é acessada entre 100 000 e 150 000 vezes por dia — com um pico de 234.640. Nesse tempo, já foram ao ar quase 35 000 posts e 1,8 milhão de comentários. Acusam-me algumas pessoas de obsessivo, e os números não as deixam mentir.

Tornei-me dependente do diálogo cotidiano que mantenho com milhares de leitores Brasil afora — e um bom tanto espalhado aí por esse mundão. Se não posso, a exemplo de Mário de Andrade, compor um “Lundu do Escritor Difícil”, sei que não sou muito fácil, especialmente porque gosto de escrever textos longos, de intercalar frases, de coordenar orações subordinadas que se distanciam perigosamente da principal, de explorar recursos já emperrados da sintaxe, de brincar com o meu apreço pela ordem.

Diziam-me nos primórdios: “Assim você não vai longe; internautas não têm tempo e paciência para esse estilo”. Sou grato pela confiança até dos que odeiam a minha página com comovente dedicação. Não raro, o amor pode se distrair e cair presa, ainda que por um lapso, de outros encantos. Mas o ódio é fiel porque dedicado escravo do ressentimento.

O amor é altivo e, liberto, esquiva-se às vezes para ser reconquistado. O ódio se oferece todos os dias ao desprezo para se nutrir do bem que não pode alcançar. Aos que amam, tenho de lhes fazer todos os dias a corte com textos novos e primícias, como o enamorado cativo. Os que odeiam me pedem bem menos: basta que eu exista para que tenham razão de ser.

Os que amam não buscam apenas a minha luta cotidiana com as palavras, que o poeta Carlos Drummond de Andrade já chamou de “a luta mais vã”. Também se alimentam da minha paixão, que é a deles, pela divergência, pelo debate, pelo contraditório. E o amor pode ser flamejante e se fazer fogo que arde pra se ver, sim! E recorre a paradoxos para expor todos os relevos de seu contentamento descontente. Escrevo páginas para os que têm sede de justiça e para os que apreciam a lógica com método.

Conquistei — digo-o com um orgulho maior do que possa abrigar — leitores que me pegam pelo braço, que são os meus Virgílios nos círculos do inferno e os anjos que me livram de diabólicos ardis, como a alma de Fausto, resgatada pelos céus na hora final. Os meus leitores me ensinaram a ser uma pessoa melhor.

É possível que outro veículo pudesse abrigar o blog ou este texto, mas é a VEJA que faz uma coisa e outra. Nestes seis anos, ainda que a vanguarda do retrocesso tentasse avançar e vencer, clamando, como a Rainha de Copas, “cortem-lhe a cabeça, cortem-lhe a cabeça”, constatei que, nesta revista, a liberdade de pensamento não é mera dama de companhia da história: presente, mas servil; educada, mas obediente; altiva, mas com autonomia não mais do que derivada.

Os fundamentos do estado democrático e de direito é que têm a tutela de nossos pensamentos, de nossas utopias, de nossas prefigurações.

Nada excita mais a fúria dos vampiros morais do stalinismo e do fascismo que a liberdade que se exerce sem pedir licença a aiatolás da ideologia. Uns estão convictos de que sua leitura de mundo foi alçada à condição de uma teologia que não pode ser confrontada. Outros entendem que ganharam nas urnas o direito de solapar os fundamentos daquilo mesmo que lhes deu expressão: as garantias democráticas.

Satanizam, então, a divergência e a convicção alheia como expressões do sectarismo, do preconceito e do ódio. Atribuem a seus adversários aquilo que eles próprios prodigalizam. Quantas vezes já não fui acusado de “intolerante” não porque excitasse a fúria de eventuais algozes de meus adversários de pensamento, mas porque, ao discordar de uma falsidade influente vendida como verdade, desafinei o coro dos contentes.

Escrevi em 2006 um artigo para o Globo em que citava uma epígrafe que está na edição inglesa (Penguin Books) do livro “The Captive Mind”, do poeta polonês Czeslaw Milosz, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1980. Relembro-a aqui. É um ditado ou, talvez, um aforismo espichado, atribuído a um velho judeu da Galícia: “Quando alguém está 55% certo, isso é muito bom e não há discussão.

Se alguém está 60% certo, isso é maravilhoso, é uma grande sorte, ele que agradeça a Deus. Mas o que dizer sobre estar 75% certo? Os prudentes já acham isso suspeito. Bem, e sobre estar 100% certo? Quem quer que diga estar 100% é um fanático, um facínora, o pior tipo de velhaco”.

Os que se arvoram em donos do pensamento tentam nos fazer duvidar de nossas convicções não porque tenham os melhores argumentos ou porque dotados de uma razão científica superior, que desmoraliza nossos preconceitos ou nossas impressões, mas porque dominam o que chamo “aparelhos sindicais do pensamento”.

Ainda que os fatos e a verdade da ciência possam estar do nosso lado, tentam se impor porque supostamente mais humanistas do que nós, mais justos do que nós, mais sonhadores do que nós, mais bondosos do que nós, mais “amigos do povo” do que nós.

Há quase três meses, as harpias do oficialismo mais subserviente, da imoralidade mais chã, da prepotência mais rastaquera têm exibido as suas garras financiadas para tentar intimidar o jornalismo independente, que não deve vassalagem aos donos do poder, que está comprometido com os fatos, que busca a verdade, anseio de milhões de pessoas, ainda que uns poucos não queiram.

São prestadores de serviço que se disfarçam de jornalistas; amantes do dinheiro vivo que se alimentam de ideias mortas; reputações que encontram no limo a justa recompensa moral por sua vileza intelectual, pelo baixo propósito de seus anseios, pela estupidez falastrona de suas predições.

Trata-se, em suma, de uma variante do poder arbitrário formada por gente paga pelo erário para assediar moralmente o jornalismo e os jornalistas que estão comprometidos com os fatos e com o conjunto de valores que definem o estado democrático e de direito.

É claro que meu blog não poderia escapar ao radar desses seres trevosos. Na periferia do pensamento, não raro ignorados pela relevância, esmagados pela própria pequenez, gritam, sem que possam apontar um só texto que justifique a sua inútil histeria: “Vejam como ele odeia em vez de debater! Cortem-lhe a cabeça!”.

Fazem-no sem contestar uma só das teses ou das evidências que apresento, exibindo uma assombrosa ignorância e excitando, eles sim, uma súcia de outros ignorantes e truculentos, que tentam transformar a vulgaridade, o baixo calão, a ignomínia e a ofensa em categorias de pensamento. São os zumbis de um passado que tenta não passar. Mas sabem que já morreram.

Em outubro de 2008, a Editora Record convidou-me para lançar um livro com uma coletânea de artigos do blog, que resultou em “O País dos Petralhas”, que vendeu mais de 50 000 exemplares. Em 2010, foi a vez de “Máximas de Um País Mínimo”, um livrinho de frases, que chegou à marca dos 20 000. Acabo de assinar um contrato para fazer “O País dos Petralhas II”.

Ainda não sei se o subtítulo será “A Luta Continua” ou “O Inimigo agora é o Mesmo”, parafraseando, pelo avesso, o “Tropa de Elite II”. Nos mais de 400 (!) artigos do Volume I — e assim será no II —, o debate de ideias, o exercício da divergência, o prazer da discordância.

Quero dizer à vanguarda do atraso que ela nem avança nem vence. É de Rosa Luxemburgo, uma socialista intelectualmente honesta dentro do seu equívoco — e isso quer dizer “ingênua” —, uma das frases que tomo como divisa: “Liberdade é, apenas e exclusivamente, a liberdade dos que pensam de modo diferente”. Rosa Luxemburgo esfregou a frase nas fuças de Lênin e Trotsky ao perceber que o primeiro ato dos facinorosos travestidos de libertários seria golpear a Assembleia Constituinte.

Não, não, caras e caros! Não tomei borrachada nas ruas em defesa da democracia nem me expus tão cedo a riscos consideráveis para que agora intolerantes viessem a cobrar caro por aquilo que a Constituição (que eles se negaram a homologar) me dá de graça: o direito à divergência e à verdade. A verdade que quero não é patrocinada pelo estado nem definida por comissário com atestado de pureza ideológica.

Quero a verdade precária do suceder dos dias.
Quero a verdade eterna reforçada pelas verdades novas.
Quero a verdade que nasce do exercício da liberdade.
A liberdade é o “Pai Nosso” do civilismo, o pão nosso da alegria!


02/06/2012



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