Não se trata mais de cobrar coerência do presidente Lula, um trabalho inútil diante do fato de que ele próprio já assumiu a forma de uma metamorfose ambulante para justificar as constantes mudanças de opinião e atitude. Pelo menos foi devido a essa mutação genética que tivemos, no lugar do incendiário, um presidente conservador que teve o bom senso de manter as linhas gerais da política econômica herdada do antecessor, o que nos fez, pela primeira vez em muitos anos, ter a mesma política por mais de 15 anos seguidos.
Não deveria ser surpreendente vê-lo sair em defesa de seu principal aliado, o senador José Sarney, lá de longe, no Cazaquistão. Se é capaz de defender o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, transformando os protestos no Irã em mera disputa de torcidas de futebol, como não defenderia Sarney, muito mais próximo dele e sustentáculo de seu governo? Não foi a primeira vez, nem será a última, que o presidente Lula tenta desculpar publicamente um aliado que se vê envolvido em denúncias.
Já utilizara antes sua popularidade para proteger os envolvidos no mensalão, e partiu dele a defesa, forjada pela visão de criminalista do então ministro Márcio Thomaz Bastos, de que o caso não passava de caixa dois eleitoral, coisa que acontecia regularmente no Brasil desde o início dos tempos. Fez o mesmo com os “aloprados”.
Aos olhos de Lula, Sarney não é “uma pessoa comum”, e deveria ter um tratamento diferenciado. Como se no Brasil tivéssemos castas, coisa que oficialmente, pelo menos, não temos.
Mas Lula assimilou rapidamente os códigos de uma parte da sociedade que insiste em não se modernizar, que está “se lixando” para a opinião pública, para onde ele transferiu, à custa de programas assistencialistas e muita lábia, seu poder político, que anteriormente provinha dos grandes centros urbanos e dessa mesma opinião pública que hoje ele despreza.
Lula recolhe a popularidade e os votos que lhe dão o poder principalmente nas regiões onde seus aliados políticos mais fortes, como José Sarney, Renan Calheiros, Jader Barbalho, dão as cartas, numa troca de favores que o obriga a beijar a mão de Barbalho em um palanque, ou a passar a mão na cabeça de Severino Cavalcanti, ou a sair em defesa de Sarney, assim como já disse que daria “um cheque em branco” para Roberto Jefferson.
Essa permanente disputa entre a ética e a atividade política não é uma exclusividade brasileira, nem do atual governo. Mas este é, sem dúvida, um governo que não teme o confronto com os valores da sociedade brasileira, os quais procura sempre desqualificar como sendo reflexos do conservadorismo, do elitismo, do reacionarismo, com uma capacidade formidável de banalizar a questão ética.
Já são notórias suas alegações de que as transgressões acontecem há 500 anos, ou a alegada necessidade de assegurar a governabilidade no nosso “presidencialismo de coalizão”.
O presidente Lula repetiu agora, quando deu declarações totalmente irresponsáveis sobre a crise do Irã, que, quando era oposição, sempre procurava encontrar culpados pelas suas derrotas, criando factoides políticos inconsequentes.
É uma nova versão para a bravata, que ele já admitiu ser seu método quando na oposição. Numa deturpação certamente inconsciente da teoria de Max Weber, que fez a clássica distinção entre a ética da consciência e a da responsabilidade do homem público, esta última justificada pelas consequências de seus atos e justificando decisões políticas que parecem inadequadas ao senso comum, o presidente Lula atribui apenas aos oposicionistas a possibilidade de atuar dentro da ética dos princípios.
No pragmatismo do governo, não haveria lugar para “principismos”, um jargão dos partidos políticos de esquerda para neutralizar eventuais tendências moralizadoras.
Lula fora pressionado, quase chantageado politicamente pelo PMDB, por meio dos presidentes das duas Casas, senador José Sarney e deputado Michel Temer, para sair em defesa do Congresso no início dessa crise.
A partir daí, o presidente começou a dar declarações minimizando o escândalo, que começou com a denúncia de distribuição de passagens aéreas e no momento chegou a decretos secretos para nomeações e promoções de apaniguados e parentes.
Estamos diante de um confronto entre o que Lula entende por “hipocrisia” e o entendimento da opinião pública.
Para nosso presidente, hipocrisia é a crítica generalizada contra o Congresso, e, para a opinião pública, é defender o comportamento dos parlamentares envolvidos em falcatruas, ou dizer que o senador José Sarney precisa receber um tratamento especial por não ser “uma pessoa comum”.
Para quem já disse que Sarney era mais ladrão do que Maluf, na campanha eleitoral de 1989, o presidente Lula está à vontade para defender qualquer coisa.
Não é a toa que o Conselho de Ética Pública está praticamente desativado.
Essa falta de princípios também se reflete na nossa política externa.
O apoio do Brasil a governos notórios por seus abusos aos direitos humanos foi criticado pela ONG internacional Human Rights Watch, em Genebra.
O Brasil se absteve sobre a resolução que condenava a Coreia do Norte por usar de tortura e campos de trabalho forçado para presos políticos.
Também se absteve de votar contra a República Democrática do Congo, por violência sexual como arma de guerra e recrutamento de crianças.
Tudo na expectativa pragmática de receber apoio para um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Seria importante Lula levar em consideração Amartya Sen, economista indiano, prêmio Nobel, que diz que o divórcio entre política e ética empobrece a ambos.
O Globo
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