Numa de suas peças mais célebres, o dramaturgo Nelson Rodrigues pendurou no pescoço de Otto Lara Resende uma frase que não desgrudaria mais do escritor: “No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte. O Otto Lara está certo. O mineiro só é solidário no câncer”.

A peça é “Bonitinha, mas ordinária”. Ganhou os palcos e o cinema. Antes de morrer, Otto foi conferir, num teatro do Rio, em 1991. Narrou o fato numa coluna de jornal, reimpressa no livro “Bom dia pora nascer”. Anotou: “Saí [do teatro] como se tivessem me pregado um rabo de papel”.

Assistindo ao vídeo lá do alto, você vai entender o porquê do “rabo de papel”. Na cena, dois personagens –Peixoto e Edgar—tramam um casamento. Na verdade, um golpe. A moça, “milionária”. O pretendente, “pé rapado”. A frase atribuída a Otto é repetida à exaustão.

Nelson Rodrigues injetou-a na cena como justificativa moral para a imoralidade urdida diante dos olhares da platéia:

— O mineiro só é solidário no câncer, é ou não é?
— Só no câncer.
— Portnato, já sabe. Eu arranho tudo, certo? Ela entra com o dinheiro e você com o resto.
— Ôba.
— Ainda por cima é linda, linda rapaz, uma coisinha...
— Eu topo. Eu caso. Caso imediatamente, eu caso já...
— Mau caráter!

Corta para a cena política de Minas Gerais. Às turras, PT e PMDB disputam a honraria de levar à refrega pelo governo do Estado um candidato apoiado por Lula. O PMDB sugere Hélio Costa. No PT, medem forças Fernando Pimentel e Patrus Ananias.

Subitamente, uma novidade escalou as manchetes. Em desvantagem nas pesquisas, o petismo mineiro passou a nutrir jucunda solidariedade por José Alencar. O vice-presidente da República ganhou ares de alternativa do consórcio governista para o governo de Minas.

Em outubro, mês da eleição, Alencar terá 79 anos. Os entusiastas da candidatua evitam comentar, mas ele carrega no abdômen um sarcoma. É um câncer agressivo e recidivo, diagnosticado em 2006. Há pouco mais de dois anos, os médicos informaram a Alencar que sua doença é incurável.

O vice-presidente já passou pela mesa de cirugia várias vezes. Na última operação, realizada em julho do ano passado, Alencar ganhou a companhia incômoda de uma colostomia -desvio que liga o intestino a uma saída aberta na lateral da barriga, onde são acomodadas bolsas plásticas.

Cinco meses atrás, Alencar contou numa entrevista que a colostomia mudara “drasticamente” a sua rotina:

“Faço o máximo de esforço para trabalhar normalmente. O trabalho me dá a sensação de cumprir com meu dever. Mas, às vezes, preciso de ajuda. Tenho a minha mulher, Mariza, e a Jaciara [enfermeira da Presidência] para me auxiliarem com a colostomia...”

“...Quando, por algum motivo, elas não podem me acompanhar, recorro a outros dois enfermeiros, o Márcio e o Dirceu. Sou atendido por eles no próprio gabinete. Se estou em uma reunião, por exemplo, digo que vou ao banheiro, chamo um deles e o que tem de ser feito é feito e pronto. Sem drama nenhum”.

Alencar leva seu drama à vitrine com galhardia incomum. “Sinto a obrigação de ser absolutamente transparente quando me refiro à doença em público. Ninguém tem nada a ver com o câncer do José Alencar, mas com o câncer do vice-presidente, sim. Um homem público com cargo eletivo não se pertence”.

Nos últimos meses, Alencar animou-se com a notícia de que o tumor que o atormenta reduzira de tamanho. Efeito da quimeoterapia.

O vice de Lula passou a cogitar a hipótese de comparecer às urnas de 2010. Almejava o Congresso, não o governo de Minas. Mas o PT mineiro cuidou de empurrá-lo para o epicentro da sucessão do tucano Aécio Neves.

Alencar iria à cabeça da chapa. Na vice, o petê Ananias. Para o Senado, o pemedebê Hélio Costa. E o outro petê, Pimentel, iria ao comitê de Dilma Rousseff.

Nesta segunda-feira (8), Alencar esteve em Belo Horizonte. Visitou Aécio. E recebeu um par de homenagens. Do petismo mineiro, recebeu o título de “militante honorário”.

A Câmara de Vereadores brindou-o com um diploma de "honra ao mérito". Em discurso de saudação a Alencar, o petê Ananias evocou o samba “Andanças”, de  Beth Carvalho: “Mestre, por onde você for, quero ser seu par".

Dono de biografia impecável, Alencar parece observar a cena de esguelha: Disse aos repórteres: "Peço sempre a Deus que as manifestações de apreço não me subam à cabeça, para que não me torne um besta...”

“...Se resolver me candidatar, prefiro um cargo no Legislativo, não necessariamente no Senado. Também há eleição para a Câmara dos Deputados".

Postergou a definição para 17 de março, quando se submeterá a nova avaliação médica. Ficaram boiando no ar duas frases. Uma do próprio Alencar, na entrevista de setembro: “Um homem público com cargo eletivo não se pertence”.

A outra, da peça de Nelson Rodrigues:

“O Otto Lara está certo.

O mineiro só é solidário no câncer”.

O PT torna a assertiva atual, muito atual, atualíssima.

Como nunca antes na história desse país.