Novos aspectos do Mensalão
Por Francisco Vianna
O que se discute aqui é o óbvio: se a teoria do domínio do fato serve para incriminar José Dirceu, a fortiori (com maior razão), também serve para incriminar Lula
Desde o início do julgamento do
mensalão, percebe-se nítida divergência entre o relator, Joaquim Barbosa, e o
revisor, Ricardo Lewandwski. Contudo, na parte em que trata do acusado José
Dirceu, a divergência ficou bem mais acentuada. O voto do relator é parecido
com uma peça acusatória. Por outro lado, o voto do revisor nada se diferencia
de uma peça defensiva.
Peço vênia aos dois ministros, mas estou apenas
constatando uma realidade que, aliás, será consignada no livro que lançarei em
breve.

O relator afirma que há provas
abundantes da culpa de Dirceu. Em sentido contrário, o revisor diz que não há
prova alguma. A realidade é que a prova técnica contra Dirceu é extremamente
frágil.
Nesse diapasão, pela ótica dos princípios que norteiam o processo
penal, o revisor tem razão, mormente porque, Jefferson, que poderia ser
utilizado como testemunha ou delator, beneficiado pela delação premiada, foi
incluído no processo como acusado, fragilizando por demais o viés probatório da
revelação que fez sobre o esquema criminoso.
Ocorre que o cenário delitivo é
gigantesco e aí fica difícil não enxergar a lógica, isto é, a ação dos que
estão por trás dos executores.
Aliás, a ministra Rosa Weber, invocando “a lógica autorizada pelo senso comum”, ressaltou que na Justiça Trabalhista ela proferiu diversos votos, sob
a inspiração de Malatesta, no sentido de que “o ordinário se presume, só o extraordinário se
prova”. Conquanto esse entendimento possa ter agasalho nas lides laborais, em
matéria penal, ao meu sentir, ele acutila os princípios da verdade real,
presunção de inocência e in dubio pro reo.
Em socorro ao raquítico quadro
probatório, que poderia ser derrubado pelo princípio do in dubio pro reo, os ministros que fazem divergência ao revisor invocaram a teoria do
domínio do fato, importada do direito alemão. Ocorre que a teoria do domínio do
fato não dispensa prova, caso contrário, estar-se-ia institucionalizando a
punição pela simples relação hierárquica.
Assim, por exemplo, o chefe da
repartição seria punido por crime ocorrido na sua área de atuação, independente
da relação de causalidade, dolo ou culpa, bastando haver relação lógica de que
ele, como chefe, teria o domínio da situação. Isso fere os princípios que norteiam
a responsabilidade penal subjetiva.
Daí a condenação de Dirceu surpreender
muita gente, inclusive eu, que não acreditava que iria acontecer, mas que hoje
é uma realidade, diante dos três votos nesse sentido e da predisposição
condenatória de outros ministros.
Como disse em artigo anterior, o STF
pode tudo, uma vez que é a última instância na dicção do direito. Assim,
pragmaticamente, é despiciendo discutir o acerto ou erro da decisão
condenatória, que ora se vislumbra.
O que se discute aqui é o óbvio: se a teoria do domínio do fato serve para
incriminar José Dirceu, a fortiori (com
maior razão), também serve
para incriminar Lula. Nesse sentido, como
o relator consignou que o “elevadíssimo cargo” que era ocupado por Dirceu lhe
conferia o domínio do fato.
Por razão maior, o cargo máximo que era ocupado por
Lula lhe coloca em situação de responsabilidade superior e automaticamente
subentendida.
Aliás, se em relação a Dirceu, o
depoimento de Jefferson não foi confirmado por outras testemunhas, o mesmo não
acontecendo em relação a Lula. Segundo o voto do relator, o depoimento de
Jefferson, dando conta de que informara ao então Presidente a existência do
mensalão, teve ampla confirmação.
Vejamos trecho do voto:
“A testemunha (refere-se
a Arlindo Chinaglia) também confirmou que participou de reunião em que o acusado ROBERTO
JEFFERSON informou ao Presidente Lula sobre a existência dos pagamentos. Aliás,
todos os interlocutores citados por ROBERTO JEFFERSON – Senhores Arlindo
Chinaglia, Aldo Rebello, Walfrido dos Mares Guia, Miro Teixeira, Ciro Gomes e o
próprio então Presidente da República – confirmaram que foram informados, por
ROBERTO JEFFERSON, nos anos de 2003 e 2004, sobre a distribuição de dinheiro a
parlamentares para que votassem a favor de projetos do interesse do Governo.
Portanto, muito antes da decisão de ROBERTO JEFFERSON de delatar publicamente o
esquema, ele já avia sido oficialmente assinalado pelo Deputado do PTB”. Ora,
isso desmente, in limine, as
declarações do então Presidente Lula de que “não sabia de nada” sobre o
mensalão.
O ministro Joaquim Barbosa também
consignou no voto que “o senhor Ricardo Espírito Santo Salgado, presidente do banco Espírito
Santo, afirmou que manteve várias reuniões, diretas e pessoais, com o próprio
Presidente da República”.
Ora, o que o
presidente de um banco privado faria em reunião direta e pessoal com o
Presidente da República?
A resposta a esse questionamento pode ser vista em
outro trecho do voto do relator: “Roberto Jefferson disse em depoimento prestado à
PF e confirmado em juízo, o seguinte: Que José Dirceu afirmou ao declarante que
o PT estaria sem recursos para cumprir o acordo, uma vez que a PF havia
prendido 62 doleiros. Que em um encontro ocorrido no início de janeiro de 2005,
o então ministro afirmou que havia recebido, juntamente com o então Presidente
Lula, um grupo da Portugal Telecom, com o Banco Espírito Santo, que estariam em
‘negociações’ com o governo brasileiro. Que José Dirceu afirmou que haveria a
possibilidade de que referido grupo econômico pudesse adiantar cerca de oito
milhões de euros, que seriam repartidos entre o PT e o PTB”...
O nome do então Presidente Lula está
em várias partes do voto do relator, de forma a não deixar dúvida alguma de seu
envolvimento com o esquema criminoso. Mas não é só isso.
Ao contrário de
Dirceu, que não praticou nenhum ato material, pelo menos não deixou rastro
disso, Lula praticou atos materiais, que se enquadram como uma luva nos artigos
13 e 29 do Código Penal. Senão vejamos. Duas foram as principais fontes de
recursos do mensalão.
A primeira está relacionada aos contratos fraudulentos
com as empresas de publicidade de Valério. Para viabilizar a contratação de
tais empresas, foi editado o decreto 4.799/2003, que além de afastar o incômodo
da licitação, permitindo a contratação direta, conferiu poderes a Valério para
funcionar como uma espécie de administrador de recursos públicos.
Esse decreto
foi assinado pelo então Presidente Lula, a mando de quem não se sabe, mas a
assinatura é dele.
Outra importantíssima fonte de
recursos do mensalão veio de empréstimos consignados em folha de pagamento a
aposentados do INSS. Primeiro foi editada a Medida Provisória 130, que criou os
empréstimos.
Assim, que foi publicada a MP, o banco BMG, envolvido no esquema, procurou habilitar-se para fazer
tais empréstimos. Contudo, não obteve êxito, porque um inconveniente parecer da
Procuradoria Federal do INSS aduziu que os empréstimos somente poderiam ser
realizados por bancos públicos, pagadores de benefícios previdenciários.
O
empecilho foi superado com a edição do decreto 5.180, dispondo expressamente
que mesmo banco privado, ainda que não fosse pagador de benefício
previdenciário, poderia se habilitar.
Graças à explicação do referido decreto, o
BMG logrou êxito à habilitação. Tanto a medida provisória como o decreto foram
assinados pelo então Presidente Lula, a mando de quem não se sabe, mas a
assinatura é dele.
Além da assinatura do “democrático”
decreto, que inclusive levou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a
representar criminalmente contra o então Presidente, arquivada pelo então
procurador-geral da República Antonio Fernando, Lula enviou mais de dez milhões
de cartas (assinadas por ele) a aposentados, anunciando a “novidade” dos
empréstimos, o que fez o BMG, com apenas dez agências, faturar três bilhões de
reais, superando a Caixa Econômica, com suas duas mil agências.
Vale lembrar,
que o BMG “emprestou” bastante dinheiro ao PT, sem qualquer garantia.
Dispõe o artigo 13 do Código Penal: “O resultado, de que depende a existência do
crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação
ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”. Considerando que as duas principais fontes de recursos do mensalão decorreram de atos praticados por Lula,
não resta dúvida de que, se não fosse ele, o resultado não teria ocorrido (como
ocorreu).
Assim, de acordo com o artigo 29 do Código Penal que dispõe: “Quem, de qualquer modo, concorre para o
crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.”, Lula teria que ter sido acusado, nem precisaria invocar a teoria do
domínio do fato, porquanto a conduta dele está inserida na cadeia de
causalidade, sendo que há provas abundantes disso, inclusive do dolo.
A propósito, por causa dessa aberrante omissão,
representei contra o ex-procurador-geral da República (PGR) Antonio Fernando,
autor da denúncia do mensalão, a fim de que fosse apurado crime de prevaricação, por ele ter deixado Lula fora da acusação,
não obstante o então Presidente ter praticado atos escandalosamente destinados
a fomentar o esquema criminoso. A representação foi arquivada, sem que o mérito
tenha sido enfrentado ou sequer aludido.
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