Corrupção
Os primeiros testemunhos feitos à comissão que investiga a rede do contraventor fazem ruir o plano de mensaleiros de usar o escândalo para atacar os que contribuíram para revelar e levar à Justiça os responsáveis pelo maior esquema de corrupção do país
Daniel Pereira, Otavio Cabral e Laura Diniz
Fim da mentira: O delegado da PF Raul Marques (à esq.) em sessão secreta na CPI do Cachoeira: a relação entre o redator-chefe de VEJA e o contraventor era de jornalista e sua fonte de informações
Há vinte anos Pedro Collor deu uma entrevista a VEJA.
As revelações originaram um processo que, sete meses mais tarde, obrigou seu irmão, Fernando Collor, a deixar a Presidência da República. Há sete anos, VEJA flagrou um diretor dos Correios embolsando uma propina.
O episódio foi o ponto de partida para a descoberta do escândalo do mensalão, que atingiu em cheio o governo passado e o PT. Agora, Collor e os mensaleiros se unem contra a imprensa num mesmo front, a CPI do Cachoeira.
Criada com o nobre e necessário propósito de investigar os tentáculos de uma organização criminosa comandada pelo contraventor Carlos Cachoeira, ela seria usada, de acordo com o roteiro traçado pelo ex-presidente Lula e pelo deputado cassado José Dirceu, como cortina de fumaça para o julgamento do mensalão.
O plano era lançar no descrédito as instituições que contribuíram para revelar, investigar e levar à Justiça os responsáveis pelo maior esquema de corrupção da história do país.
Tamanha era a confiança no sucesso da empreitada que o presidente do partido, Rui Falcão, falou publicamente dela e de sua meta principal: atacar os responsáveis pela "farsa do mensalão".
Tudo ia bem - até que os fatos se incumbiram de jogar o projeto petista por terra.
Na semana passada, dois delegados da Polícia Federal prestaram depoimento à CPI do Cachoeira. Eles foram responsáveis pelas operações Vegas e Monte Carlo, que investigaram a quadrilha do contraventor.
A ideia dos radicais petistas e seus aliados era utilizar a fala dos policiais para comprometer o procurador-geral da República, Roberto Gurgel (que defenderá a condenação dos mensaleiros no julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal), o governador de Goiás, o tucano Marconi Perillo (transformado em inimigo figadal de Lula desde que declarou que o ex-presidente tinha conhecimento da existência do esquema) e a imprensa, que revelou o escândalo.
Nesse último setor, como deixou clara a performance do ex-presidente Collor, encarnado na triste figura de office boy do partido que ajudou a tirá-lo do poder, o alvo imediato era o jornalista Policarpo Junior, diretor da sucursal de VEJA em Brasília e um dos redatores-chefes da revista. O primeiro depoimento foi do delegado Raul Alexandre Marques, que dirigiu a Operação Vegas.
Marques disse aos parlamentares que entregou ao procurador Roberto Gurgel, em setembro de 2009, indícios de envolvimento de três parlamentares - incluindo o senador Demóstenes Torres - com a quadrilha de Cachoeira.
Gurgel, conforme o delegado, não teria determinado a abertura do inquérito nem dado prosseguimento à apuração. Foi a deixa para que petistas dissessem que ele tentou impedir o desmantelamento de uma organização criminosa e, por isso, deveria ser convocado para depor na CPI. O procurador-geral da República reagiu. Na seara técnica, disse que não abriu inquérito a fim de permitir a realização da Operação Monte Carlo, que desbaratou o esquema de Cachoeira no início deste ano.
No campo político, foi ainda mais incisivo. "O que nós temos são críticas de pessoas que estão morrendo de medo do julgamento do mensalão", afirmou.
Ao fustigarem o procurador na CPI do Cachoeira e venderem a tese de que ele não mereceria crédito por ter uma atuação política, mensaleiros e aliados levaram procuradores e ministros do STF a sair em sua defesa.
ATAQUE AOS ACUSADORES - Mensaleiros, que têm no petista Vaccarezza o seu porta-voz na CPI, queriam convocar o procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Ele defenderá a condenação dos réus do processo do mensalão
Petistas, que chegaram a comemorar o resultado da primeira etapa do plano, agora já não demonstram o mesmo empenho para convocar Gurgel. Em uma conversa recente, o ex-ministro José Dirceu contou ao seu interlocutor o motivo do recuo. "O efeito foi o contrário do imaginado. A única consequência da CPI foi acelerar o processo do mensalão", afirmou.
Lula, o idealizador do plano, também já faz leitura semelhante. Para ele, a CPI do Cachoeira "tem de ficar do tamanho que está" - ou seja, limitar-se a investigar Cachoeira e seus tentáculos no Congresso e em governos estaduais.
Da mesma forma, a ofensiva para desqualificar o trabalho da imprensa já não seria uma prioridade. "Não podemos fazer dessa CPI um debate político ou um acerto de contas entre desafetos", afirmou o deputado Cândido Vaccarezza, do PT de São Paulo, espécie de porta-voz do grupo dos radicais.
A declaração é uma guinada de 180 graus no discurso - guinada essa decidida apenas depois que os fatos, com sua persistente impertinência, se sobrepuseram aos interesses do partido.
Desde a prisão de Cachoeira, a falconaria petista seguiu a tática de disseminar mentiras e omitir uma parte, sempre a mais importante, da verdade. Para isso, não hesitou nem mesmo em recorrer a fraudes e manipulações nas redes sociais da internet .
O grupo imputou à equipe de VEJA toda sorte de crimes, os quais, esperava, seriam pontuados pelos delegados da PF.
E o que disseram os policiais em depoimentos à CPI?
Que o jornalista Policarpo Junior aparece lateralmente nas interceptações telefônicas sempre no exercício da profissão, apurando e investigando informações, que não cometeu crime nem trocou favores com a quadrilha (veja o quadro na pág. 65) e que não trocou "mais de 200 ligações com Cachoeira".
Na Operação Monte Carlo, apenas dois telefonemas aparecem, segundo o delegado Matheus Rodrigues.
Outros ingredientes fizeram a estratégia petista fracassar. O primeiro foi a dificuldade para encontrar aliados que se dispusessem a levar adiante os propósitos meramente políticos e revanchistas do partido.
Diversas siglas, incluindo o PMDB, se negaram a aderir à trama. Como disse o senador Aécio Neves, do PSDB de Minas Gerais: "O que está em jogo é a democracia. No momento em que nós tivermos o Ministério Público Federal fragilizado e a imprensa cerceada, teremos a democracia em xeque".
Houve ainda a firme condução dos trabalhos da CPI pelo relator Odair Cunha (PT-MG), que não se dobrou às pressões de facções do seu partido, e a oposição contundente de Dilma Rousseff à estratégia dos radicais. A presidente considera que, a continuar na direção em que estava, a CPI poderá virar uma disputa de políticos corruptos contra seus acusadores. Dilma está irritada com o presidente do PT, Rui Falcão, que vem defendendo publicamente o ataque à imprensa. Na terça-feira, disse a um auxiliar: "Se algum ministro falar algo parecido com o que o Rui vem dizendo, vai para a rua na hora".
Fotos: Orlando Brito, Bia Parreiras, Claudio Versiani,
Roberto Stuckert/Ag. O Globo e Marcos Rosa
Roberto Stuckert/Ag. O Globo e Marcos Rosa
O ANO EM QUE O PRESIDENTE CAIU - Pedro Collor deu o pontapé inicial e os fatos fizeram o resto: PC Farias recolhia propina de empresários para cobrir os gastos de Collor, como no caso do famoso Fiat Elba; vinte anos depois do processo que o levou a renunciar ao mandato, o ex-presidente (à dir., com a ex-mulher Rosane, a "madame que gastava demais", nas palavras de PC) quer se vingar de quem o investigou
Que forças aparentemente tão antagônicas quanto Collor e os falcões do PT se juntem na CPI com o mesmo e nefasto propósito de desqualificar a imprensa livre pode parecer assustador, mas não deixa de ser também natural.
Na política, as convicções balançam facilmente ao sabor das conveniências - para o bem ou para o mal, sendo que a segunda opção é mais frequente.
Já na imprensa livre, os princípios não se sujeitam às circunstâncias.
O dever de fiscalizar os governos vale para quaisquer governos. E, no caso de VEJA, ele foi levado a cabo com o mesmo rigor tanto na gestão lulo-petista quanto na cleptocracia de Collor.
Em 2009, no julgamento que derrubou a Lei de Imprensa, o ministro Carlos Ayres Britto, hoje presidente do STF, usou uma frase de Roberto Civita, presidente do Conselho de Administração do Grupo Abril e editor da revista VEJA, para descrever a natureza da relação entre jornalistas e homens públicos: "Contrariar os que estão no poder é a contrapartida quase inevitável do compromisso com a verdade da imprensa responsável".
Foi essa parte da imprensa, a responsável, que, diante do ataque perpetrado contra VEJA, ergueu a voz na semana passada na defesa dos princípios basilares do jornalismo.
O jornal O Globo, em um editorial corajoso, criticou o que chamou de "campanha organizada contra a revista VEJA" feita por "blogs e veículos de imprensa chapa-branca que atuam como linha auxiliar de setores radicais do PT". Escreveu O Globo: "A operação tem todas as características de retaliação pelas várias reportagens da revista das quais biografias de figuras estreladas do partido saíram manchadas, e de denúncias de esquemas de corrupção urdidos em Brasília por partidos da base aliada do governo".
Fiscalizar os atos de governo foi uma função que surgiu praticamente junto com a imprensa. Durante a revolução inglesa, no século XVII, comerciantes e industriais insurgiram- se contra o poder absolutista dos reis. Defendiam a supremacia das leis em relação à vontade do monarca e o fortalecimento do Parlamento como forma de diminuir a corrupção na corte.
Nascia assim o conceito de accountability, ou o dever dos governantes de prestar contas à população. Para divulgarem suas ideias, os insurgentes ingleses usavam papéis impressos em uma máquina inventada dois séculos antes, a prensa tipográfica, que passou a produzir os primeiros jornais.
Ailton de Freitas/ Ag. O Globo, Tasso Marcelo/AE,
Beto Barata/AE
Beto Barata/AE
Os réus: Jefferson, Dirceu, Delúbio e Valério devem ser julgados em breve pelo STF. A denúncia que deu origem ao processo partiu de VEJA, com prova em vídeo
No que se refere às suas instâncias fiscalizatórias, o Brasil já atingiu um patamar seguro. É uma situação diferente da que existia no tempo do processo de impeachment de Collor, quando o país vivia uma espécie de "lacuna fiscalizatória".
A Constituição havia sido promulgada recentemente e o aparato estatal de autodepuração era ainda incipiente.
O Ministério Público, por exemplo, estava assimilando seu novo papel de representante da sociedade, e não do estado, e a Polícia Federal apenas começava a se livrar da poeira autoritária que a recobria.
Mas, ainda que as instituições tenham amadurecido, elas sozinhas não bastam para assegurar a vigilância constante sobre os governos e os homens públicos. Sua natureza as obriga a se mover vagarosamente. "Por esse motivo, o papel de precursor das denúncias não costuma ser das instituições públicas, mas da imprensa", diz Alexandre Camanho, presidente da Associação Nacional de Procuradores da República.
O jornalismo brasileiro vem cumprindo com vigor sua missão de revelar os casos de desídia e corrupção na esfera pública. Nos últimos anos, têm sido inúmeros os registros de parlamentares, prefeitos, governadores e ministros obrigados a deixar o cargo em razão de revelações feitas pela imprensa e comprovadas pelas autoridades.
A imprensa livre não é ideológica.
Não persegue indivíduos nem empreende cruzadas contra partidos ou administrações.
Ela se volta, sim, contra os que, no poder, se dedicam à prática de espoliar o bem público, guiados pela presunção da impunidade e pela convicção de estarem acima do bem e do mal. Se alguma lição pode ser tirada até agora do último escândalo em curso na República, ela pode ser resumida em mais uma frase do ministro Ayres Britto:
"À imprensa cabe vigiar o estado - nunca o contrário"
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