Eu me atrasei um pouquinho, mas me vinguei de vocês.
Lá vai um daqueles textos bem longos para o domingão. Longo e, creio, necessário.
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É vergonhoso o que certos setores da imprensa vêm fazendo no caso da jovem Mayara, que postou mensagens absurdas no Twitter, contra os nordestinos.
Atenção! Não estou dizendo que ela não deva RESPONDER PELO QUE FEZ (e não por aquilo que NÃO FEZ ), mas há um limite para as coisas. As penas têm de ser proporcionais aos delitos.
É um princípio da civilização que não pode ser esmagado pelos “civilizados”.
A imprensa politicamente correta está exibindo seu lado sensacionalista.
Lembra aqueles senhores que ocupam as tardes nas TVs com programas policiais, exibindo, aos berros, as suas soluções simples e erradas para problemas difíceis.
A palavra de ordem parece ser esta: “Já que ela escreveu aquelas barbaridades, então vamos linchá-la; destruí-la”.
Ou ainda: “Descobrimos que ela é muito má; a Justiça é lenta; vamos resolver nós mesmos esse problema e condená-la”.
O espírito que anima essa sede de punição e reparação é fascistóide. Os fascistas do bem estão na Internet e nos jornais, magnificando o que não tem importância e tentando despertar forças que, uma vez libertas, dificilmente voltam para a caixa.
Mayara, uma paulista, escreveu coisas inaceitáveis sobre “nordestinos”?
Por certo!
Ela é a única?
Não é!
Nordestinos, mineiros, sulistas etc. escrevem coisas inaceitáveis sobre paulistas?
O tempo inteiro!
Uma simples pesquisa na rede vai revelá-lo. O ressentimento contra São Paulo é tão grande quanto escandalosamente injusto.
Injusto, aliás, é o ressentimento contra qualquer região.
Mas São Paulo está proibido de posar de vítima porque não pega bem. Afinal, o estado mais rico da federação — e fica parecendo que assim é porque roubou isso de alguém… — tem de agüentar calado as suas supostas culpas.
Mas o que digo eu? “São Paulo” como ente só existe na boca dos que têm a pretensão ser seus inimigos!
Uma das coisas que me agradam neste estado, ou nesta capital, é precisamente isto: ser paulista ou paulistano não quer dizer nada em especial.
Não somos conhecidos por nossa esperteza silenciosa, por nosso charme adoravelmente malandro, por nossa sensualidade à flor da pele, por nosso espírito nativista, por nosso amor às lendas da floresta…
Felizmente, ser paulista ou paulistano, ou morar por aqui, permite que a gente NÃO SEJA COISA NENHUMA!
E aos não-paulistas informo: nem levem muito a sério esse negócio de que somos trabalhadores incansáveis.
Há muitos vagabundos por aqui, como em toda parte.
Diziam-me mineiros no começo da corrida presidencial: “Esquece, Reinaldo!
A esmagadora maioria deste estado não vai votar em Serra porque se consolidou a idéia de que ele tomou o lugar de um mineiro”.
E cansamos de ler a respeito desse nobre sentimento na imprensa, sem que alguém se lembrasse dizer: “Epa! Que história é essa?”
Agora imaginem se detectassem tal sentimento em São Paulo. Logo escreveriam um tratado sobre a arrogância dos paulistas ou sei lá o quê. O sentimento antipaulista é a versão local do recalque que degenera no antiamericanismo.
Em certas áreas do país, querem tratar os paulistas como o “eles”, categoria que estaria em oposição ao “nós”.
O caso Mayara trouxe esse sentimento à tona. Assim como existem antiamericanos dentro dos EUA, existem antipaulistas em São Paulo: parte da imprensa daqui não está sendo menos bucéfala do que a imprensa de acolá.
É simplesmente mentira que exista na maior cidade nordestina do Brasil — sim, leitor, há mais nordestinos em São Paulo do que em Salvador, a maior capital do Nordeste — um sentimento antinordestino.
O pernambucano Lula fez a sua carreira em São Paulo.
A paraibana Luíza Erundina foi prefeita da capital do Estado.
Uso exemplos da política porque é nessa área que esse tipo de sentimento se exacerba.
Conheço algumas capitais do Nordeste. Não o suficiente para escrever tratados ou ser peremptório a respeito de algumas coisas. Mas já fui a restaurantes populares e a restaurantes chiques da Bahia, por exemplo, onde se tem, talvez (a conferir), o maior percentual de população negra do país.
E, claro, já fiz isso dezenas de vezes em São Paulo, onde o percentual de negros é muito menor. A nenhum observador honesto escapará uma evidência: é muito mais freqüente a presença de negros nos ambientes refinados de São Paulo do que nos de Salvador ou do Recife.
O país tem de aprender a equacionar as suas diferenças. E vem fazendo isso, ora acertando, ora errando, não vou entrar nesse mérito agora.
Mas não venham tentar dar aula de civilidade tolerância a São Paulo os que não combatem no próprio solo as escandalosas desigualdades e os preconceitos os mais evidentes.
QUEM DECIDE FAZER GUERRA REGIONAL ESTÁ SENTANDO EM CIMA DO PRÓPRIO RABO PARA TENTAR DENUNCIAR O ALHEIO.
Seria mesmo maior o preconceito que os “paulistas”, como se existisse essa categoria!, têm contra os nordestinos do que o que aquele que ALGUNS NORDESTINOS ricos têm contra os nordestinos pobres no próprio Nordeste?
Ora, tenham paciência!
O que leva um jornal como o “Correio”, da Bahia, a publicar na primeira página a foto da autora das mensagens infelizes com o título “A paulista”?
Será esse jornal tão zeloso em combater as injustiças existentes no próprio estado como é em tentar promover uma guerra contra São Paulo em nome da… justiça?
Admitir-se-ia que um jornal paulista publicasse a foto de um criminoso qualquer nascido na Bahia como o “O baiano”?
É claro que não!
E não creio que isso devesse ser tolerado. O Ministério Público certamente entraria em ação. Já São Paulo pode suportar muito bem uma carga de preconceito se o objetivo nobre é… combater o preconceito!
Ciclo de violência
Coisas inacreditáveis estão em curso.
É de estarrecer uma reportagem da Folha neste sábado.
Ficamos sabendo que a moça é filha de um relacionamento extraconjugal do pai, Antonino Petruso.
Leiam:
“O empresário Antonino criticou a declaração de sua filha -fruto de um caso extraconjugal no fim dos anos 80 -, que, segundo ele, causou efeito colateral indesejado para toda a família.
‘Tenho raiva de quem faz preconceito, seja amarelo, branco, azul, pobre. Se ela [Mayara] realmente escreveu aquilo, vai ter que pagar.’”
É espantoso!
É assustador.
Ele próprio expõe a sua vida privada e a da garota, como se a condição de “filha fora do casamento” tornasse menores seus vínculos com a jovem, tomada, no contexto, como agente de um desequilíbrio familiar.
Ironicamente, sua empresa se chama “Supermercado do Papai”.
O supermercado é do papai!
O papai revela ainda que a relação com a filha não é boa; não quer que as opiniões dela sejam confundidas com as da família — talvez quisesse dizer “a verdadeira família”.
Não sei que punição a Justiça vai aplicar a essa moça — até porque será preciso muita licença jurídica para provar que ela praticou racismo, como sabe qualquer advogado medianamente informado.
Mas há como ela ser punida mais do que está sendo?
Se não conseguir mudar de nome, as suas mensagens no Twitter a terão destruído para sempre.
Quantos milhares já fizeram a mesma coisa, não porque sejam militantes racistas, mas porque estão mal informados, pensam errado, reproduzem tolices que ouvem de outros?
E os nordestinos os únicos agredidos.
A coisa agora segue no ritmo do horror, do pega-pra-capar. Já que ela foi estúpida o bastante para escrever aquilo, pode ter a imagem estampada na capa de um jornal da Bahia como “a paulista”.
Já que escreveu aquilo, pode ser demonizada pelo pai, que a trata como uma bastarda, agente de dissabores familiares e ovelha desgarrada, que não reproduz os valores da família — ele, na verdade, tem “raiva” de gente assim.
Já que escreveu aquilo, ela não terá direito a um julgamento justo. Afinal, os nossos irmãos nordestinos merecem um desagravo — nem que seja o linchamento.
Por isso recomendei aqui o filme a O Último Jantar (The Last Supper), de Stacy Title, cuja boa tradução em português seria “A Última Ceia”, já que o filme, por metáfora, evoca um ritual religioso.
Não deixem de ver!
Por acidente, um grupo de jovens bem-informados, politicamente corretos, muito sábios, acaba tendo de enfrentar a fúria de um fascistóide. Um deles mata o bandidaço. Eles se dão conta, então, de que o mundo não ficou pior com aquela morte.
Como não ficaria pior se morressem o pastor homofóbico, o xenófobo, a puritana…
Então decidem agir para tornar o “mundo melhor”.
Vejam as conseqüências .
Trata-se de um debate formidável sobre o bem, o mal, a tolerância e os tribunais de exceção.
Não são melhores
Na verdade, são piores.
Mayara é só uma moça que disse uma estupidez.
O “Correio”, da Bahia, é um jornal que tem responsabilidades de apelo coletivo.
Se a jovem viola um princípio constitucional ao escrever o que escreveu, o mesmo fez o jornal baiano.
E cadê a OAB para acioná-lo?
Cadê o Ministério Público Federal para propor uma investigação?
E a Folha?
Provem que as informações sobre a vida privada da garota servem a algum outra coisa que não à fofoca e à expiação.
Arremato
Indivíduos dizem bobagens o tempo inteiro. Há uma diferença entre dizê-las e se organizar para pôr em prática as sandices que eventualmente escrevem nas redes sociais.
A punição tem de ser proporcional ao crime. E tem de ser aplicada pela Justiça, não por um pelotão de fuzilamento moral ou por aproveitadores interessados em faturar com a guerra regional, que tenta opor o Brasil ao Brasil.
Quem inventou esse país cindido tem um projeto político e dele extrai os melhores resultados para si e para o seu grupo.
No dia 27 de março de 2008, durante um discurso em Pernambuco, Lula cobriu de elogios Severino Cavalcanti (PP-PE), ex-presidente da Câmara, afirmando que ele fora derrubado do posto por causa do “preconceito das elites paulistas e do Paraná”.
Essa “guerra” tem servido unicamente aos propósitos daqueles que lucram politicamente com o confronto entre Nordeste e São Paulo, entre ricos e pobres, entre brancos e negros…
Poderia, e agora para encerrar mesmo, haver manifestação mais clara do uso vigarista dessas falsas clivagens do que o discurso que Lula fez na sexta-feira?
Segundo ele, a sua eleição e a da “companheira Dilma” significaram a superação de preconceitos.
E ele disse isso num pronunciamento oficial!
Ora, então a eventual derrota de ambos teria significado o contrário.
Logo, a única maneira de a gente demonstrar que ama o Brasil unido é alinhando-se com o PT.
As falas de Mayara pertencem a Mayara, o indivíduo.
O rumo que tomou essa irrelevância tem de ser pensado à luz da cultura política que está sendo alimentada pelo poder.
Em muitos aspectos, Mayara também é vítima de uma ação política deliberada para dividir o país.
E há um monte de jornalista tonto ou mau-caráter fazendo o servicinho para o PT.
Como sempre.
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