Ele continua a ser um personagem típico do circo esquerdista, onde não há lugar senão para dois personagens, os equivalentes ideológicos de Pierrot e Arlequim: a ilusão e o cinismo.
Por Olavo de Carvalho
Mídia Sem Máscara
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3 de maio de 1996, mais de 17 anos atrás.
Publicado no livro ‘O Imbecil Coletivo – Atualidades Inculturais Brasileiras’.
O DEPUTADO JOSÉ GENOÍNO tem hoje a fama de ser homem respeitado igualmente pela esquerda e pela direita. Contribuem muito para isso a inteligência, a polidez, a simpatia e o ar despretensioso com que S. Excia. encanta a todos os que o ouvem falar. Muito o ajudam, também, a elegância e a retidão com que ele tem cumprido os deveres da ética parlamentar, seja diante de seus companheiros de partido, seja dos adversários. Tudo isso faz dele um homem digno da distinção que hoje o cerca. Mas o motivo principal de seu prestígio é que ele encarna, segundo a opinião geral, a personificação mesma de uma “nova esquerda”, esclarecida e democrática, despida de toda pretensão totalitária e avessa ao emprego da violência como meio de acesso ao poder.
O próprio Genoíno dá verossimilhança a essa interpretação, na medida em que, sem renegar de todo sua atuação de guerrilheiro, ele a vincula a um determinado momento do passado, como coisa adequada àquele tempo e inadequada ao nosso. O Genoíno de hoje, ao contrário do de ontem, crê mais no voto, no diálogo e no império da lei do que na retórica brutal das metralhadoras.
Ele subscreve, em nome da esquerda, a máxima predileta da direita: Os tempos mudaram. E como direita e esquerda têm por dogma comum de seus respectivos evangelhos a crença piedosa no mito do progresso, o deputado torna-se assim um sacerdote da deusa ante a qual se prosternam os fiéis de ambas as igrejas: a Modernidade.
Porém, mais importante que isso é o lado moral da transformação. A edição revista e melhorada do deputado Genoíno faz dele, no consenso da opinião consagrada pelos jornais e por todas as pessoas de bem, um esquerdista diferente: alguém, em suma, que, mesmo nos momentos decisivos das radicalizações e dos confrontos mais duros, será sempre mais obediente à moral do que à ideologia, mais fiel ao compromisso democrático do que a uma estratégia para a tomada do poder, mais atento à palavra dada em público do que a lealdades secretas de conspirador e revolucionário.
Se essas qualidades já não delineassem, por si, o perfil de alguém fundamentalmente inapto para a carreira política, deixando sem explicação o sucesso parlamentar de homem tão destituído daquele mínimo de maquiavelismo e hipocrisia, que o senso comum considera indispensável a semelhante ofício, elas ainda assim imporiam, ao observador atento e conhecedor da história da esquerda, algumas constatações bastante inquietantes.
Em primeiro lugar, a rejeição que o deputado faz da violência armada não é de ordem moral: é estratégica. Num determinado quadro político-social, o uso das armas é sensato; num outro, torna-se insensato. Não se trata portanto de rejeitar o terrorismo, as bombas e o morticínio, a contestação violenta da ordem estabelecida, mas apenas de usá-los segundo um diagnóstico das condições objetivas e subjetivas que, em determinada fase do processo histórico, os aconselham ou desaconselham segundo as conveniências da estratégia revolucionária. Somente pessoas totalmente ignorantes da história das esquerdas — ou seja, a totalidade da nossa opinião pública, incluindo os jovens universitários — podem imaginar que a atitude presente do deputado Genoíno seja, nisso, algo de novo e diferente. Ela é a repetição literal e fidedigna de uma posição já adotada, em várias circunstâncias, por Marx e Lênin, Stálin e Mao, Guevara e Fidel Castro. São somente os anarquistas e os fascistas que, seguindo Bakunin e Georges Sorel respectivamente, têm o emprego da violência como um princípio incondicional e uma regra de ação permanente. Para os comunistas, a violência é e sempre foi instrumental e dependente das conveniências ou inconveniências estratégicas assinaladas pela análise realista do quadro histórico. E é precisamente isto o que ela é para o deputado Genoíno, o qual, se for sincero, há de reconhecer que expressei com exatidão o seu mais profundo pensamento a respeito desse ponto.
Em segundo lugar, é um fato histórico dos mais notórios que a esquerda mundial, nos momentos em que as conveniências a levaram a adotar predominantemente a via pacífica e democrática, tirou sempre disto um indevido proveito moral, dando ares de virtude ética ao que era apenas um meneio estratégico provisório, prestes a ceder lugar, na primeira oportunidade em que isto se fizesse necessário, ao emprego maciço dos meios sangrentos. Nunca faltaram platéias devotas que, nas fases de pacifismo estratégico, acreditassem — por ignorância ou por puro wishful thinking — estar presenciando o nascimento de uma nova esquerda, humanizada e redimida. Este espetáculo— com sua contrapartida cíclica de desilusões e autocríticas choronas — repetiu-se dezenas de vezes no curso da história do movimento esquerdista.
O deputado Genoíno, portanto, não é nada novo também sob este aspecto: ao tirar proveito do equívoco que toma por pureza moral o que é esperteza estratégica, ele continua rigorosamente dentro do padrão tradicional de conduta das esquerdas. Se ele faz isso conscientemente ou apenas se deixa deleitar num estado de embriaguez moral em que o aplauso dos enganados acaba por enganar o próprio enganador, é coisa que ignoro: não conheço as profundezas de sua psique para saber se nele predomina o maquiavelismo consciente ou a falsa consciência; o que sei é que, em qualquer dos dois casos, ele continua a ser um personagem típico do circo esquerdista, onde não há lugar senão para dois personagens, os equivalentes ideológicos de Pierrot e Arlequim: a ilusão e o cinismo.
Em terceiro lugar, nunca existiu para as esquerdas a hipótese de fazer uma opção categórica entre via armada e via pacífica, pela simples razão de que toda e qualquer estratégia revolucionária exige o emprego, ora sucessivo, ora simultâneo, dos dois instrumentos. Entre as armas da retórica e a retórica das armas, a esquerda sempre optou pelas duas. Nenhuma revolução esquerdista, em qualquer parte do mundo, se fez jamais por uma dessas vias exclusivamente, ou mesmo predominantemente. A única distinção que cabe é a seguinte: como é impossível, fisicamente, um mesmo indivíduo participar ao mesmo tempo das duas, tomando assento no parlamento às segundas, quartas e sextas e fazendo guerrilha nas selvas às terças, quintas e sábados, é inevitável que uma distribuição de funções atribua a alguns membros do movimento esquerdista o papel mais brando e civilizado, a outros o mais violento e selvagem. Assim, Trótski, na clandestinidade, preparava a insurreição armada, enquanto na cidade a intelligentzia e os deputados esquerdistas na Duma (parlamento russo) pregavam, em linguagem perfeitamente compatível com a ordem e as leis, a defesa dos direitos humanos de trabalhadores e camponeses. Somente Lênin, de longe, era a cabeça por trás dos dois braços, que atuavam com total independência mútua e não raro se hostilizavam.
Do mesmo modo, no tempo em que o jovem Genoíno treinava guerrilha no Araguaia, os deputados e senadores da esquerda, no Congresso, auxiliados pela intelectualidade urbana e pela imprensa de oposição, procuravam obstar por meios legais e pacíficos a ação do governo militar.
A esquerda, naquele tempo, não optou pela via armada: acrescentou-a, apenas, ao combate parlamentar e legal, atuando em dois planos, como quem mantém o adversário distraído por um abundante fluxo de argumentos enquanto junta forças para chutá-lo no baixo ventre.
É absolutamente necessário, ao sucesso de qualquer estratégia revolucionária, que as duas mãos da revolução atuem independentemente e sem que se possa identificar por trás delas o menor sinal de um comando unificado. A convergência dos resultados de uma e de outra — o abalo e destruição do adversário — deve parecer, até o último momento, pura obra do acaso. Não é incomum que o comando estratégico chegue a tornar-se invisível, abstendo-se de interferir e deixando que as duas alas atuem de maneira realmente incoordenada, para só forçar a unificação do movimento no instante do desenlace. Foi precisamente o que fez Lênin em seu exílio europeu. O comando de uma revolução é um ser evanescente e ambíguo, que, durante todo o tempo em que as águas correm na direção desejada, se mantém na posição de um discreto observador a quem ninguém, à primeira vista, atribuiria qualquer poder significativo.
Ora, não havendo opção entre legalidade e ilegalidade, ação parlamentar e ação de guerra, combate de palavras e combate militar, mas sim sempre convergência e articulação mesmo por trás da duplicidade aparentemente incoerente das duas correntes de atuação, o deputado Genoíno sabe que, ao assumir sua aparente opção pela via pacífica, está simplesmente desempenhando um dos papéis do enredo revolucionário, seguro de que alguém estará se incumbindo do papel complementar e fazendo a parte suja do serviço, sem comprometer em nada a imagem de bonzinho que as circunstâncias e conveniências da estratégia esquerdista atribuíram no momento à pessoa do deputado.
José Genoíno sabe que, excluída do campo de sua atuação pessoal, a parte violenta da ação revolucionária não foi de maneira alguma excluída da estratégia global do esquerdismo. Apenas, o papel que cabe hoje a José Genoíno é aquele que, nos seus tempos de guerrilheiro, incumbia a Francisco Pinto no Congresso, a Mário Martins no Senado, a Ênio Silveira e não sei mais quantos na luta cultural, ao passo que o papel que então foi de José Genoíno é desempenhado hoje por José Rainha e suas legiões de posseiros armados.
E, se sabe tudo isso, Genoíno sabe também que sua pretensa opção pela via pacífica é pura pantomima para disfarçar o que não passa de redistribuição de funções segundo as idades e os talentos de cada combatente, no quadro de uma estratégia esquerdista que, hoje como ontem, no Brasil como na Rússia, discursa em cima e bate em baixo, com suas duas mãos de sempre. Se não fosse puro fingimento de militante fiel, se fosse genuína e não apenas genoínica, a recusa da violência imporia ao deputado o dever de não apenas condenar em termos veementes as operações de guerra empreendidas por José Rainha, mas, com toda a coerência lógica, a obrigação de exigir que fossem punidas com os rigores da lei, malgrado o discurso ético-social que lhes serve de pretexto. Se, em vez disso, o próprio Genoíno as aprova tacitamente e as justifica em nome de não sei quantas racionalizações moralizantes, gastando em benefício delas o seu próprio prestígio de pacifista inofensivo, é porque está lá precisamente para esse fim, para dar à violência a cobertura retórica e a legitimação política sem a qual ela perderia toda aura de respeitabilidade e seria condenada como banditismo puro e simples. Já tendo passado da idade de dar tiros, que é coisa feia, o deputado foi transferido, na periódica rotatividade dos quadros esquerdistas, para a seção de embelezamento.
Tudo isso é de uma obviedade patente, e o fato de que mesmo pessoas letradas se recusem a enxergá-lo, ou, enxergando-o, teimem em escondê-lo aos olhos dos demais, só se explica pela mesma mistura e alternância de ingenuidade e cinismo, que mencionei acima, e que constitui a típica receita mental da platéia esquerdista, tal como o Arlequim da falsa consciência e o Pierrot da consciência pérfida são os únicos personagens no palco da sua fantasia. Desafio publicamente o deputado Genoíno a provar com fatos e razões — e não mediante artifícios de retórica depreciativa ou apelos sentimentais — que meu diagnóstico é falso ou deficiente em algum ponto. Caso ele o prove, estarei disposto a abjurar minha opinião imediatamente.
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