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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Paulo Henrique Amorim, o “negro de alma branca” e os demônios de cada um de nós






Sempre fico com um pé atrás ao ler/ouvir afirmações enfáticas do tipo “Eu não sou racista”, ou “Fulano não é racista”.

Ela já é perigosa quando dita sobre si mesmo, e mais ainda quando dita sobre o outro, que é o único que deveria saber de si.

Por Ana Maria Gonçalves


Racismo, assim como o machismo ou a xenofobia, é um tipo de sentimento que facilmente contamina quem é exposto a ele, de maneira ostensiva ou velada.

É herdado, não tem muito para onde escapar.

Principalmente em sociedades como a nossa que, durante muito tempo, lutou para esconder a discrepância entre prática e teoria, entre evidências de racismo e manutenção e construção de um modelo de democracial racial que nunca existiu.

O que precisamos fazer é estar atentos a qualquer pensamento racista e combatê-lo ali, no nascedouro, não deixando que se naturalize e domine nosso modo de agir e de pensar.
 

Acho que só assim podemos, brancos e negros, acabar de fato com o racismo (e outros ismos): de maneira individual, consciente e, acima de tudo, honesta.

Não é através de leis ou de ações afirmativas, que defendo e acho mais do que necessárias para que sirvam de proteção e escada enquanto não somos capazes dessa revolução interna.

É o trabalho de cada um, doloroso e vigilante, que pode avançar cada vez que um caso atinge proporções midiáticas, porque nos faz refletir à partir de situações que colocam figuras públicas no ambiente privado, vivenciando situações nas quais às vezes podemos nos reconhecer.

Como humanos e imperfeitos que somos.

Falo agora do recente caso envolvendo os jornalistas Paulo Henrique Amorim e Heraldo Pereira.

Esse é um caso emblemático para entender a manifestação do racismo no Brasil, e que ele também pode ser praticado por pessoas consideradas “do bem”.

Aliás, quase sempre é.

Com raras exceções, nosso racismo é do tipo cordial, daquele que não necessariamente origina leis segregacionistas ou atos de ódio explícito, e por isso é difícil chamá-lo pelo nome que tem.

Racistas convictos ou esporádicos somos todos nós.

É sempre bom lembrar de uma pesquisa realizada pela USP : à pergunta “Você tem preconceito?”, 96% dos entrevistados responderam “não”; à pergunta “Você conhece alguém que tenha preconceito?”, 99% responderam que sim, e quando perguntados quem eram esses preconceituosos, eles disseram que eram amigos próximos, pais, irmãos.

Então, racistas são nossos pais, tios, primos, amigos, namorados, vizinhos.

E não há razões para acreditarmos que somos muito diferentes deles, mesmo porque também somos pais, tios, primos, amigos, namorados ou vizinhos de alguém.

Racistas podem ser pessoas das quais gostamos e pelas quais somos capazes de fazer vista grossa em relação a um ou outro ato que, do nosso ponto de vista, é computado com um deslize, um momento de descontrole, uma atitude isolada.

Para quem não é alvo do ato, é simples assim: um átimo, um momento “não era eu quem estava agindo”.

Para quem o sofre, as consequências podem durar uma vida inteira, como podemos perceber em um trecho do “The envy of the world”, de Ellis Cose:
“Eu me lembro alguns dos incidentes da minha infância que me acordaram para a verdade, incidentes que, algumas vezes de modo doloroso, me apresentaram a diferença entre branco e preto.

(…) Eu tinha ido a Marshall Field Company, uma grande loja de departamentos em Chicago, para comprar um presente para a minha mãe. Enquanto eu circulava na loja imponente, calculando o que meu dinheiro podia comprar em um lugar tão caro e intimidante, percebi que estava sendo seguido – e que meu seguidor era membro da segurança da loja.
De uma seção para outra da Marshal, o guarda me fazia sombra, com sua vigilância marcante e odiosa. Determinado a não me sentir intimidado, continuei a circular, tentando com todas as minahs forças ignorar o homem que estava caminhando praticamente nos meus calcanhares.

Finalmente, incapaz de me conter, virei-me para encará-lo. Gritei alguma coisa – não me lembro mais o que – um uivo de orgulho ferido e ofensa. Ao invés de responder, o homem se manteve firme, encarando-me com uma expressão que combinava diversão e desdém.
Devemos ter nos encarado por vários segundos, até que me toquei de que eu não era mais páreo para ele e seu desprezo do que um rato era para um gato.

Corri pra fora, concedendo a ele a vitória (…) Décadas após aquele dia, lembro precisamente das minhas emoções – a raiva impotente, o ressentimento que fere, a vergonha,  a decepção intensa comigo mesmo (por não me manter firme frente ao ataque silencioso do homem, por permitir que um intolerante fizesse eu me sentir um idiota, por não ser capaz de arranhar a auto-confiança arrogante do guarda.)”
Essa é uma situação mais comum do que se poderia desejar, pela qual já passou a grande maioria dos negros, principalmente meninos negros.

É é uma memória da qual boa parte deles nunca vai conseguir se livrar, porque geralmente marca o início de sua relação com um mundo que vai tratá-los de maneira hostil apenas pelo fato de serem negros.

Alguns conseguem transformar essa mistura intragável de sentimentos em força para o ativismo e lutam para que não muitos depois deles passem por situções semelhantes.

Outros não.

Por isso é prepotente e insensível dizer a alguém o que se deve fazer ou deixar de fazer por se ser quem é.

Ou seria o caso de sairmos por aí cobrando que todas as mulheres estejam o tempo todo louvando as mulheres que, no passado, lutaram pelos direitos das mulheres e para que violência doméstica e estupro, por exemplo, fossem considerados crime.

Militância é para quem pode, quer, aguenta, tem tempo e estômago e, sobretudo, paciência para lidar com os absurdos que são capazes de dizer e fazer aqueles que ainda não conseguiram ou não querem se livrar de certos preconceitos porque, direta ou indiretamente, querendo ou não, sendo ou não complacentes, se beneficiam deles.

Mesmo sendo Heraldo Pereira um negro alienado, como o acusa Paulo Henrique Amorim, o que especificamente confere a Paulo Henrique Amorim o direito de julgá-lo nesse sentido?

                                Leia mais aqui.


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