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quarta-feira, 3 de julho de 2013

Egito e as flores do mal: Quando milhares vão às ruas para pedir que o Exército dê um golpe para impedir a ditadura islâmica



 Por Reinaldo Azevedo


APOIO – Helicópteros do Exército levando a bandeira do Egito sobrevoam a Praça Tahrir, no dia 1º de julho, durante manifestação pedindo a saída do presidente Mohamed Mursi
(Foto: Suhaib Salem/Reuters)

Milhares de egípcios estão de volta à praça Tahrir. Só nesta terça-feira, houve 16 mortos. O Exército deu um ultimato ao presidente Mohamed Mursi: ou busca o diálogo e pacifica o país ou… Bem, fala-se abertamente numa intervenção. Na segunda-feira, o mundo assistiu ao, até então, inimaginável: helicópteros do Exército sobrevoavam a praça carregando bandeiras do Egito. Estavam ameaçando o povo da praça? Ao contrário: ofereciam-lhe proteção. A massa delirava e aplaudia, pedindo abertamente a intervenção dos militares. Que estranha história é essa? Nada de novo sob o sol. Vamos ver.

Uma das belezas da Internet é a disponibilidade de arquivo. Assim, vocês poderão, se tiverem um tempinho, recorrer à área de busca para saber o que andei escrevendo, ao longo do tempo, sobre “Primavera Árabe”. Deixei aqui registrado umas duzentas vezes que se tratava de uma invenção do jornalismo ocidental. Tentou-se emprestar àqueles levantes ares de revolta democrática. Pois é… Recentemente, apanhei bastante porque escrevi aqui que a Turquia, que não é árabe, era “a prova dos noves de que é impossível haver, a um só tempo, um regime islâmico e democrático”, a nãos ser que inventem feitiçarias como “democracia ileberal”, na formulação de alguns intelectuais do miolo mole. A “democracia iliberal” deve ser a irmã gêmea da “ditadura suave”…

A Turquia evidencia, assim, que o problema, obviamente, não é étnico. Não existe incompatibilidade sanguínea de árabes com o regime democrático. A questão é o Islã. Ou um estado é teocrático — ainda que exerça uma forma velada e branda da teocracia — ou é democrático. País em que o estado — e, por consequência, os cidadãos — obedecem a comandos dos que se apresentam como intérpretes da ordem divina não têm como atender às demandas plurais da sociedade nem como abrigar a divergência. Afinal, que sentido faz brigar com Deus, não é mesmo? Tanto pior se as correntes hoje influentes dessa religião convivem mal com a diferença e com a pluralidade.

A crise estava contratada. Recomendo um excelente artigo sobre a crise publicado em seu blog por Adam Garfinkle, que edita The American Interest. Ele lembra que o Exército é a única força realmente organizada do país e a mais afinada com o mundo moderno. E é assim há mais de 60 anos — ao menos desde 1952. Ora, como vamos nos esquecer — e chamei tantas vezes a atenção par isso aqui — que Hosni Mubarak foi deposto por aquilo que se poderia chamar, tecnicamente, de golpe de estado? Depois de alguns confrontos de rua (e não foram tantos assim para os padrões de uma ditadura; compare-se com a Síria…), os militares deram um chega pra lá em Mubarak e assumiram o comando, preparando, então, o terreno para as eleições.

Mursi, da Irmandade Muçulmana, foi eleito, e o Exército tentou se apresentar como o condestável também do novo regime. O presidente fez de conta que aceitou, mas não demorou a destituir a cúpula da Força e a promover uma grande troca de oficiais do comando por outros simpáticos à Irmandade. E deu início — e era fatal que o fizesse porque é quem é — à chamada islamização do país. O Egito é um país esmagadoramente muçulmano, sim, mas a ditadura Mubark era laica. Garfinkle lembra que o país entrou em colapso porque a turma recrutada por Mursi não tem a menor ideia do que seja governar. Bagunça semelhante está em curso na Líbia, só que este país tem pouco mais de 6 milhões de habitantes; no Egito, eles passam dos 80 milhões.

Citando um outro autor, Garfinkle observa que a “Síndrome IBM” marca a cultura política no Egito e no mundo árabe. Ele explica. O “I” designa a palavra “inshallah”, o tomara-Deus — uma espécie de fatalismo passivo. O “B” remete a “bokr”, que quer dizer “amanhã de manhã”, ou só “amanhã”. Trata-se, diz o autor, de uma noção pré-moderna do tempo. Há uma obsessão em empurrar tudo com a barriga. O “M” remete a “Malesh”, algo como “deixa pra lá”., “ninguém se importa”, “tanto faz”… Some-se a isso um estado inteiramente aparelhado pela Irmandade Muçulmana, e está dada a receita do caos. O Exército, diz Garfinkle, é a única instituição profissionalizada do país, que não sofre da “Síndrome IBM”.

O prazo dado pelos militares a Mursi termina nesta quarta-feira. O presidente foi à televisão, disse que não renuncia, e isso correspondeu a um convite para que seus aliados, que também são muitos milhões, saiam às ruas. Muitos entenderam o chamamento como um convite à guerra civil caso as Forças Armadas, agora com o apoio dos setores laicos, deem um chega pra lá no presidente. Golpe? Pode-se dizer que sim, a exemplo daquele dado para derrubar Mubarak. “Ah, mas, agora, estariam depondo um presidente eleito.”

Chegamos ao “x” da questão. Eleição é condição necessária para que um regime seja democrático, mas não condição suficiente, como evidencia o Irã — que é uma ditadura teocrática. Mursi foi eleito com o compromisso de fazer um governo laico, respeitando as minorias. Não está cumprindo a palavra. Tentou alijar os militares do poder e acabou flertando com a bagunça.

Segundo informa AFP, o site do jornal Al-Ahram, que é ligado ao governo, afirma que os militares pretendem suspender a atual Constituição, montar um conselho presidencial composto por três pessoas, liderado pelo presidente da Suprema Corte, e convocar um grupo de especialistas para redigir uma nova Carta, que seria submetida a referendo. Essa nova Constituição levaria em conta “as necessidades dos diferentes componentes do povo”. O Exército, claro!, seria a garantia do cumprimento desses passos — na prática, seria o poder. Ao fim de um período de nove meses a um ano, marcar-se-iam, então, eleições gerais. E, saibam, o plano conta com o apoio dos movimentos que estão nas ruas contra Mursi.

Pois é… Que dispositivo haveria na nova Constituição que pudesse impedir a Irmandade Muçulmana de vencer de novo as eleições e reiniciar os esforços de islamização do país? Não sei! O que sei é que a “Primavera Árabe” resultou no inverno de Mohamed Mursi, que, tudo o mais constante, vai rivalizar com Mubarak em número de mortos. O que sei que o Exército volta a ser o protagonista da cena, agora com o apoio de milhares de civis que rejeitam uma ditadura islâmica, ainda que nascida das urnas.

03/07/2013

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