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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A TRAGÉDIA PETISTA





Por Zander Navarro
O Estado de S. Paulo


Peço licença, inicialmente, para um breve relato pessoal. Nos anos 1980 contribuí mensalmente com parte do meu salário para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os depósitos duraram de dois a três anos, quando a campanha foi encerrada, por falta de adesão. Com sacrifício, cheguei a oferecer até 10% do meu ganho e ainda guardo os recibos. Por que fiz isso? Naqueles anos, saindo do ciclo militar e ansioso pela democracia, ingenuamente entendi ser o MST uma força que renovaria a oligárquica política rural. Como os seus militantes passaram a ameaçar as famílias em assentamentos, o sonho desmoronou e retornei à vida universitária.

Na época, quase todos nós apoiávamos o PT, mesmo não sendo filiados. Imaginávamos que o partido também forçaria transformações em alguma direção positiva. Ou a reforma social ou, ao menos, a democratização da sociedade. Vivíamos então um período febril de debates plurais e de experiências práticas. Lembram-se do "modo petista de governar"? Era simbolizado pelo orçamento participativo, que prometia a livre participação dos cidadãos em decisões públicas sobre os orçamentos municipais. Na campanha de 2002, contudo, o candidato petista mal falou do assunto e, no poder, o tema se esfumaçou.

O assombroso escândalo da Petrobrás, que nos deixa estupefatos, é apenas o efeito inevitável da história do Partido dos Trabalhadores. A causa original é um mecanismo que o diferencia das demais agremiações partidárias. Trata-se de um processo de mobilidade social ascendente, inédito em sua magnitude. Movimento que poderia ser virtuoso, se aberto a todos, pois seria a consequência do desenvolvimento social. Mas, na prática, vem sendo uma odiosa discriminação, pois é processo atado à filiação partidária.

O núcleo pioneiro do PT recrutou segmentos das classes baixas e mais pobres, mobilizados pelo campo sindical, pelos setores radicalizados das classes médias, incluindo parte da intelectualidade, e pela esquerda católica, ampliando nacionalmente o grupo petista inicial. À medida que o partido, já nos anos 90, foi conquistando nacos do aparato estatal, vieram os cargos para os militantes e, assim, a chance arrebatadora de ascender às vias do dinheiro, do poder, das influências e do mando pessoal. Esse foi o degenerativo fogo fundador que deu origem a tudo o que aconteceu posteriormente.

Inebriados, cada vez mais, pelo irresistível prazer do novo mundo aberto a essas camadas, até mesmo impensáveis formas de consumo, todos os sonhos fundacionais de mudança foram sendo estilhaçados ao longo do caminho, incluídos a razoabilidade e os limites éticos. O PT gerou dentro de si uma incontrolável ânsia de mobilidade, uma voragem autodestruidora inspirada na monstruosa desigualdade que sempre nos caracterizou. Conquistado o Planalto, não houve nem revolução nem reforma e o fato serviu, particularmente, para saciar a fome histórica dos que vieram de baixo.

Instalou-se, em consequência, o arrivismo e a selva do vale-tudo: foi morrendo o padrão Suplicy e entrou o modelo Delúbio-Erenice. Logo a seguir, ante a inépcia da ação governamental, também foi necessário impor a mentira como forma de governo. Por fim, o PT mudou de cabeça para baixo o seu próprio financiamento. Abandonou o apoio miúdo e generoso dos milhões que o sustentaram na primeira metade de sua história, pois se tornara mais cômodo usar o atacado para ancorar-se no poder. Primeiro, o mensalão e, agora, os cofres da Petrobras.

Nessa espiral doentia de mudanças, a partir de meados dos anos 1990 o partido enterrou o seu passado. Sua capacidade de reflexão, por exemplo, deixou de existir e o imediatismo passou a prevalecer. Assim, um projeto de nação ou uma estratégia de futuro não interessavam mais. O pragmatismo tornou-se a máxima dessa nova elite e sob esse caminho o subgrupo sindical e seus militantes vêm pilhando o que for possível dentro do Estado. Examinados tantos escândalos, invariavelmente a maioria veio do campo sindical. E foi assim porque da tríade original dos anos 80, a classe média radicalizada e os religiosos abandonaram o partido. Deixaram de reconhecê-lo como o vetor que faria a reforma, sobretudo moral, da política brasileira.

Entrando neste século, o PT não tinha nada mais para oferecer de distintivo em relação aos demais partidos. A aliança com o PMDB ou Lula abraçando Maluf foram decorrências naturais. Também por tudo isso, o campo petista reivindicar o monopólio da virtude é o mesmo que fazer de idiotas todos os cidadãos. No primeiro turno, a fúria das urnas demonstrou a reação indignada dos eleitores à falsidade.

O que vemos atualmente é a soma dessa descrição com as nossas incapacidades políticas de construção democrática em favor do bem comum. O PT é hoje uma neo-Arena que promove, sobretudo, o clientelismo nos grotões. Não aqueles definidos geograficamente, mas os existentes nos interstícios sociais, confundindo as pessoas por meio da mentira, do bolsismo e das mistificações de toda ordem.

É uma trajetória vergonhosa para um partido que prometeu a lisura republicana, o aprofundamento democrático, a reforma de nossas muitas iniquidades e, especialmente, prometeu corrigir a principal deformação de nossa História, que é um padrão de desigualdade que nos infelicita desde sempre. É ação que igualmente vem abastardando o Estado, atualmente tornado disfuncional e semiparalisado em inúmeros setores.

Por todas essas razões, incluindo o benéfico aperfeiçoamento que, fora do poder, sofrerá o próprio PT, é preciso mudar. E com urgência, pois o Brasil se esfarinhará sob outros quatro anos dessa gigantesca manipulação política, o desprezo pela democracia, o primado da lealdade partidária sobre a meritocracia e a fulgurante incompetência técnico-administrativa do campo petista no poder.

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