Documentos exclusivos mostram como turma de
Rosemary Noronha e dos irmãos Vieira tentou influenciar juízes e atenuar
as penas dos mensaleiros
DIEGO ESCOSTEGUY, COM MARCELO ROCHA, MURILO RAMOS, FLÁVIA TAVARES E LEANDRO LOYOLA
Trecho da reportagem de capa de ÉPOCA deste fim de semana
Às 9h47 do dia 12 de novembro deste ano, a chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo, Rosemary Noronha, ou Rose, ligou para Paulo Vieira, diretor da Agência Nacional de Águas, espécie de operador jurídico da quadrilha descoberta pela Polícia Federal na Operação Porto Seguro.
No telefonema de 11 minutos, interceptado pela PF e a que ÉPOCA teve
acesso, os dois não discutem como vender facilidades a empresários
interessados em canetadas do governo – nem a distribuição do butim da
quadrilha, conforme já se revelou.
Ambos discutem o julgamento do
mensalão.
Naquele dia, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF),
como já se esperava, viriam a definir as penas dos principais
integrantes do núcleo político do mensalão: os petistas José Dirceu,
José Genoino e Delúbio Soares. Na conversa, Paulo Vieira pede a Rose que
consiga o apoio de Dirceu para as articulações secretas que ele, Paulo,
fazia em Brasília.
Elas tinham um objetivo claro: tumultuar o
julgamento.
Ou, ao menos, impedir que os mensaleiros cumprissem suas
penas.
“Eu vou protocolar amanhã ou quarta aquela outra questão que eu queria que você mostrasse para o JD (José Dirceu).
Você lembra qual é, né?”, diz Paulo Vieira no diálogo.
Embora ele não
tenha especificado a que “questão” se referia, naquele momento
integrantes da quadrilha dos pareceres – Paulo Vieira, o deputado
Valdemar Costa Neto, condenado pelo mensalão, e o empresário e
ex-senador Gilberto Miranda – movimentavam-se nos bastidores para
pressionar os ministros do Supremo a mudar votos, aliviar nas penas ou
acatar futuros recursos dos advogados dos réus.
Queriam até nomear um
amigo para o STF, na vaga aberta pela aposentadoria do ministro Carlos
Ayres Britto.
Contavam com a proximidade de Rose com o ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva e com Dirceu, como demonstram as provas
reunidas pela PF. Os delegados miravam na quadrilha dos
pareceres. Acabaram acertando numa operação para melar o julgamento do
mensalão.
Na conversa, Rose sabia do que Paulo falava. Mas Paulo estava
preocupado com a disposição de Dirceu em articular ao lado da quadrilha:
“Não sei se o JD está com cabeça para mexer com essas coisas”. Rose o
tranquiliza: “Eu vou viajar com ele (Dirceu) no feriado. Nós vamos para a Bahia. Eu converso bastante com ele. (…)
Ele não pode ficar preso dentro de casa, né. A vida corre. Eu falo com
ele. Eu tive com ele no feriado, eu falo com ele”. Paulo pergunta,
então, como está o ânimo de Dirceu. Rose diz: “Está bastante chateado.
Estão preparando umas coisas. (…) É o Gilberto Miranda que está
ajudando ele. Estão fazendo várias reuniões na casa dele”. Paulo
conhecia essas articulações – participava delas. “Isso eu tenho mais ou
menos ideia do que eles estão falando”, diz ele. Ato contínuo, Rose
conta como ficou sabendo das articulações: “Ele (Dirceu) me disse… A mulher dele (de Dirceu, Evanise Santos) disse que eles têm reunião lá na casa dele (Gilberto Miranda)”. Paulo diz: “O Gilberto Miranda é muito bem (sic) para articular, viu. (…) Eu não sabia que eles estavam apostando tantas fichas dessa questão, tá”. “Parece que tão”, diz Rose.
JANTARES
Gilberto Miranda (à esq.) e Valdemar Costa Neto (ao lado). Eles fizeram reuniões para tentar adiar o cumprimento da pena de Valdemar
(Foto: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo )
Paulo sonda Rose sobre a eventual participação de Lula nas operações de
bastidores para melar o julgamento.
De acordo com a PF, quando ambos
falam de “Deus”, é a Lula que se referem.
Segue-se o diálogo:
– Eu não sabia que o JD (Dirceu) tava dando esse peso todo para o Giba (Gilberto Miranda), não. Mas eu continuo apostando que o melhor peso que tem é o… Deus, viu – diz Paulo.
– É, mas ele não vai fazer absolutamente nada – responde Rose.
– Você está achando que Deus não está a fim de…
– Não! Eu acho que não está a fim, não.
– É! Às vezes ele tem medo de arrumar confusão, né, Rose?
Antes que Rose explicasse a que problemas se referia, Paulo a
interrompe. Diz que eles não podem “falar essas coisas por telefone”.
Paulo, porém, não seguia o próprio conselho. Muito menos os demais
integrantes da turma conhecida como quadrilha dos pareceres – uma turma
que, agora se descobre, era bem mais influente do que se imaginava.
ÉPOCA teve acesso, com exclusividade, ao relatório que a PF preparou
sobre todas as autoridades que conversavam com integrantes da quadrilha
ou eram por eles citadas – aqueles que fazem jus a foro privilegiado na
Justiça.
No documento de 98 páginas, há um capítulo para cada uma das 18
autoridades. Cada capítulo descreve em detalhes as circunstâncias em
que elas aparecem nas investigações.
Estar no relatório, é bom deixar
claro, não significa integrar a quadrilha; nem é prova de algum crime –
embora, em alguns casos, como de Valdemar Costa Neto, as evidências
sejam fortes.
Como essas autoridades têm o privilégio de ser
investigadas e, eventualmente, julgadas nos tribunais de Brasília, os
delegados da PF enviaram o relatório, na quarta-feira da semana passada,
ao presidente do STF, Joaquim Barbosa, e ao procurador-geral da
República, Roberto Gurgel. Caberá aos dois avaliar se há elementos
suficientes para iniciar uma investigação.
Há integrantes das cúpulas dos Três Poderes no relatório. Isso
demonstra o trânsito privilegiado da quadrilha em Brasília.
Há ministros
do governo Dilma, como Luís Inácio Adams, da Advocacia-Geral da União,
coração do esquema na capital (leia o quadro abaixo).
Há
ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do STF, como Dias
Toffoli, antecessor de Adams na AGU.
Há seis deputados federais, entre
eles Valdemar Costa Neto, além do presidente do Senado, José Sarney.
Há,
finalmente, prefeitos, como Gilberto Kassab, de São Paulo – ele pede a
Gilberto Miranda, segundo a PF, ajuda para uma indicação ao STJ.
O
relatório traz, em suma, um catálogo do poder. Quanto mais se aproxima
do poder, mais revela a trama para salvar os mensaleiros.
Os telefonemas e e-mails captados pela PF demonstram que a quadrilha se
preocupava com os rumos do julgamento antes mesmo que ele começasse.
No
dia 10 de junho de 2012, às 17 horas, os irmãos Paulo e Rubens Vieira,
ambos indiciados pela Polícia Federal e denunciados pelo Ministério
Público, conversaram por 12 minutos sobre o mensalão.
Quatro dias antes,
o Supremo definira o cronograma do julgamento. Os dois tentavam antever
a posição de alguns ministros no julgamento previsto para iniciar-se em
agosto.
Falaram sobre as expectativas de que fossem definidas penas
mínimas. Paulo diz que seria interessante a transmissão das sessões.
“Sabe por quê? Os ministros vão explodir de vaidade, moço. Se um
ministro explodir de vaidade, vai brigar um com outro”, diz ele. Rubens
concordou: “Vai, vai”.
Paulo afirmou: “O ideal é isso aí, porque todo
mundo já sabe que o julgamento é político e que eles não vão sair de lá
ilesos. Então, o negócio agora é tumultuar o processo”.
Duas horas depois, Paulo ligou para Rose. Ela contou que almoçara com
Dirceu no feriado de Corpus Christi (7 de junho).
Segundo ela, Dirceu
fizera uma previsão de ser condenado a quatro anos de prisão. “Ele (Dirceu)
está mais aliviado que marcou. Agora, tem uma conversa que foi à
revelia, sem o cara saber, que o Toffoli não sabia, tava inclusive
voando para São Paulo e a Ivanise (Evanise Santos, a mulher de Dirceu)
viu ele no avião, no horário da reunião”, diz Rose.
Trata-se da reunião
administrativa entre os ministros do STF, em que se definiu que o
julgamento aconteceria no segundo semestre.
Apesar da narrativa de Rose,
Toffoli fora avisado da reunião pelo então presidente da corte,
ministro Carlos Ayres Britto. Não compareceu.
As primeiras semanas do julgamento, entre agosto e setembro, mostraram
quão equivocada era a relativa confiança da quadrilha de que Dirceu e
Valdemar se safariam.
Naquele momento, as condenações sucediam-se
diariamente. Estava evidente que os principais réus, aqueles de quem
Paulo e seus comparsas dependiam politicamente, seriam condenados.
Paulo
resolveu, então, “cuidar da parte política”. O primeiro alvo, segundo
as gravações, foi o ministro Dias Toffoli. Na noite de 27 de setembro, a
PF interceptou um e-mail entre carla.margarida@bol.com.br e
guatapara.sp@bol.com.br.
Os dois endereços eletrônicos eram usados por
Paulo para se comunicar com diferentes advogados próximos à quadrilha.
A
PF não conseguiu identificar a quem Paulo se dirigiu ao escrever o
e-mail. Na mensagem – Assunto: “Urgente”–, discutiu-se o julgamento do
mensalão e o caso de Valdemar.
De acordo com o texto, Valdemar, já
condenado pelo crimes de lavagem e corrupção passiva, precisaria de
quatro votos favoráveis na acusação de formação de quadrilha.
Isso
abriria espaço para recurso.
“Gostaria de conseguir o voto do ministro
Toffoli, pois assim conseguimos completar, pois o Marco Aurélio irá
votar a favor dele”, diz o texto.
Toffoli seria o primeiro a votar na
sessão seguinte. O e-mail se encerra com um apelo: “É uma questão de
vida ou morte, minha irmã (…) Fale que ele já ajudou muito um familiar
seu, que você ama muito”.
Não se sabe se o e-mail foi endereçado a uma
advogada ou a Rose.
O voto de Toffoli, naquele momento, não era óbvio. Lewandowski, com
quem Toffoli sempre votava, condenara Valdemar nesse crime. Toffoli
votou por sua absolvição do crime de formação de quadrilha. Fez o mesmo
em relação aos demais réus do núcleo político.
Valdemar, ao fim, pegou
sete anos e dez meses de pena – condenação que o livra, por pouco, da
cadeia. Não há evidência no relatório de que o “trabalho político” de
Paulo tenha tido qualquer influência na decisão de Toffoli.
Caberá a
Gurgel decidir se é o caso de investigar o assunto.
Procurado por ÉPOCA,
Toffoli afirmou que não tem conhecimento dos diálogos da Operação Porto
Seguro e que não tem “relacionamento” com Paulo Vieira.
Ele afirmou que
“conhece Rosemary Nóvoa de Noronha e Evanise Santos, sendo que ambas
trabalharam na Presidência da República”, onde Toffoli também trabalhou
no primeiro mandato de Lula.
Quanto às menções ao julgamento do
mensalão, Toffoli afirmou que recebeu os advogados de defesa dos réus
para entrega de memoriais, incluindo o advogado Marcelo Bessa, defensor
de Valdemar.
“Tal fato é da rotina do julgamento de qualquer processo”,
disse.
No início de novembro, quando os ministros terminavam de definir
as penas dos réus já condenados, a quadrilha entrou em pânico.
E bolou
novas formas de livrar os mensaleiros.
Paulo e Valdemar, que trocaram ao
menos 38 telefonemas e se encontraram múltiplas vezes no curso do
julgamento, eram os mais preocupados.
É nesse momento que foi acionado o
empresário Gilberto Miranda. Segundo a PF, ele patrocinava as propinas
do grupo e usava a influência que detinha junto aos senadores do PMDB
para fazer negócios no governo – e tentar ajudar os mensaleiros.
No dia 1º de novembro, Miranda entrou em ação. Receberia Sarney para um
jantar em sua casa, de modo, segundo Miranda, a conversar sobre a
defesa dos mensaleiros – e, segundo Paulo, a “segurar” o julgamento.
No
final da tarde, Sarney ligou para Miranda e confirmou presença no
jantar.
Naqueles dias, Miranda trabalhava para que o jurista Saulo Ramos
apresentasse recursos no processo do mensalão.
A atuação de Ramos,
segundo Miranda, poderia “segurar em três anos” a execução da pena de
Valdemar.
Por meio de sua assessoria, o senador José Sarney afirmou que não
conversou com Valdemar Costa Neto nem atuou para que o amigo Saulo Ramos
entrasse em sua defesa.
“O jantar foi rotineiro encontro social entre
amigos. Saulo e Gilberto são amigos de muitos anos do presidente Sarney.
Vez por outra jantam juntos. O presidente Sarney não faz gestões para
que Saulo Ramos atue em defesa de ninguém.”
Valdemar diz que conversou
com Sarney sobre a contratação de Ramos – mas que, até agora, nada
prosperou. Ramos não confirma ter ido a um jantar com Sarney e Miranda,
embora admita ser “íntimo” de ambos.
Nos momentos finais do julgamento, a quadrilha tornou-se agressiva nos
comentários – e nas ofensivas aos ministros.
Num diálogo de 4 de
novembro, Miranda afirma, sobre os ministros Ricardo Lewandowski e
Joaquim Barbosa: “Lewandowski é muito fraco, é uma porcaria, ficou
atabalhoado, e aquele ‘crioulo’ (sic) ficou citando página tal, página tal, que não tem nada a ver”.
No dia 22 de novembro, pouco antes de a Operação Porto Seguro ser
deflagrada, os diálogos revelam a tentativa da quadrilha de influenciar o
voto de Lewandowski sobre Valdemar.
Paulo Vieira chama essa tentativa
de “missão São Bernardo”, referência à região de origem de Lewandowski e
às boas relações entre as famílias dele e de Luiz Marinho, atual
prefeito da cidade paulista.
Nos telefonemas, Paulo orienta Valdemar a
pedir ajuda a Marinho e diz como ele deveria conversar com Marinho: “É
que o senhor precisa de uma força. Ele (Marinho)…com uma palavra resolve
isso aí. As famílias são próximas, entendeu?”.
Quatro dias depois,
Lewandowski daria seu voto em relação à aplicação da pena a Valdemar, já
condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Quase três horas depois dessa conversa, Valdemar liga para Paulo
Vieira, a fim de contar como foi a reunião com Luiz Marinho. Diz que ele
(Marinho) já havia entrado em contato com o cara (Lewandowski).
“Já mandou levar...porque não dá tempo, né, Paulo? É segunda-feira”,
afirma Valdemar. “Já mandou levar o memorial lá, já falou com o cara,
que trabalha..que o cara nomeou um lá. Ele mandou por torpedo. Aí o cara
eu já mandei, falei que vai o Fabeti. Eu liguei pra Fabeti pra levar o
material na mão dele (…) Você tinha razão.”
A PF grafou equivocadamente o nome do advogado Rafael Favetti, que
integra a equipe jurídica de defesa de Valdemar no processo do mensalão.
Procurado por ÉPOCA, Favetti afirma ter sido orientado por Valdemar a
procurar o ministro Lewandowski no dia seguinte.
“Entreguei o memorial a
um assessor do ministro Lewandowski. Mas entreguei o memorial a outros
ministros também”, disse Favetti. Lewandowski nega ter sido procurado
por Marinho, embora o conheça. “Fui rigoroso no julgamento com o
deputado Valdemar. Se havia alguma articulação, o tiro saiu pela
culatra”, afirmou.
Lewandowski condenou Valdemar a sete anos e dez meses
pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Foi seguido
pela maioria dos ministros. Apesar da clareza dos diálogos, Valdemar e
Marinho negam ter conversado sobre o mensalão no encontro.
A ousadia dos mensaleiros também veio a público na terça-feira da
semana passada, quando o jornal O Estado de S. Paulo publicou detalhes
do depoimento que o operador do esquema, Marcos Valério, deu à
Procuradoria-Geral da República (PGR) no dia 24 de setembro.
Nele,
Valério incrimina o ex-presidente Lula. Diz, entre outras coisas, que
Lula deu um “ok” para a liberação do dinheiro do mensalão – e que pagou
suas despesas pessoais. Lula e os demais envolvidos negaram com
veemência as acusações de Valério.
Nos últimos dois meses, ÉPOCA investigou, com seis pessoas próximas ao
caso e a Valério, os bastidores desse movimento desesperado. Valério
decidiu entregar à PGR o que dizia saber sobre Lula não para tentar
diminuir sua pena no mensalão, mas nos demais processos que ainda
enfrenta por causa do esquema. E também, ao menos na avaliação de
Gurgel, para tumultuar o andamento do julgamento do mensalão.
Há três
semanas, Valério prestou novo depoimento ao MP, contando mais detalhes e
apresentando mais provas do que disse. Gurgel, porém, ainda acha
inconsistentes tanto a versão narrada por Valério quanto as (poucas)
provas apresentadas até agora por ele. A cautela de Gurgel,
aparentemente, tem razão de ser.
A dois amigos, Valério disse que não
entregou tudo o que tem ao MP. “Eu morro se fizer isso”, disse a eles.
Valério também disse a Gurgel que morreria se contasse tudo. “Acho que
ele quer apenas tumultuar o julgamento”, disse Gurgel a colegas. Não é o
único.
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