FHC: Sim. O governo pode vir a recuperar a
iniciativa, mas não vai recuperar com ministro enrolando na televisão. A
resposta da reforma política não é crível. A saída é ir mais fundo nas
investigações e reconhecer: erramos. Quantas vezes não disse que errei
por não ter ajustado o câmbio antes de 1998? Tinha mil razões para dizer
porque não ajustei mas não importa. Não se pode fugir da
responsabilidade histórica. Fica esse jogo de cabra cega. O presidente
Lula foi fazer uma declaração absolutamente imprópria, de pedir que os
exércitos da CUT e do MST fossem para a rua. Depois ele se cala? Não se
sente responsável se depois os ânimos se acirrarem? Ele sumiu e agora é
só Dilma que é a culpada? Só se lê nos jornais que Lula reclamou da
Dilma. Que é isso?
Valor: O ex-presidente foge de suas responsabilidades?
FHC: Sim, claro. Esses desatinos que foram
praticados pelo governos em várias áreas como na política de campeões
nacionais, da retenção do preço da gasolina e da política energética.
São responsabilidades históricas do Lula, da Dilma e do partido deles
que conduziu esse processo. Agora dizem que foi o Guido?
Valor: O senhor diz que não se pode ir a fundo
na apuração das responsabilidades nos desmandos na Petrobras, mas no
inquérito surgiram elementos como a delação do ex-diretor Pedro Barusco,
que disse ter começado a cobrar propina em 1997. Como o senhor responde
a isso?
FHC: Li todos os depoimentos do Barusco. Foi um ato
individual dele. A institucionalização veio depois de 2004. Ele foi
claro. Não existe isso, mas não tenho nenhum medo que se apure. Não
tenho nada a ver com isso.
Valor: O presidente da Câmara, Eduardo Cunha,
disse que a corrupção se avolumou com a carta-convite adotada em seu
governo em substituição à Lei de Licitações na Petrobras. Ele está
errado?
FHC: Aquilo foi uma exigência natural do sistema
econômico. Como a Petrobras deixou de ser monopólio, para ela poder
competir com as outras empresas ou tem mais agilidade ou não consegue.
Foi condição para viabilizar a flexibilização do monopólio e favorecer a
Petrobras. Agora não foi com o propósito de se fazer o que se fez
depois. Foi para competir. Se a carta-convite fosse a causa, toda
empresa privada teria malandragem porque elas têm essa flexibilidade. E
se estava errado porque deixaram aí por 12 anos? Era um decreto. É só
mudar e deixar a Petrobras sem condições de competir com a Esso ou com a
Shell.
Valor: Que atualização o senhor faria da teoria dos anéis burocráticos?
FHC: Tem alguma similitude, mas naquela época do
regime militar eu dizia que o jogo político não estava fora do Estado
estava dentro. Agora não é assim. Você tem os dois jogos. Fora e dentro.
Quando Luciano Coutinho foi designado presidente do BNDES sabia que ele
adotaria a política dos campeões nacionais, o modelo coreano. Só que a
Coreia foi por outro modelo, do desenvolvimento tecnológico. Não foi
fazer frigorífico lá fora. Ali começou a haver um bloco hegemônico, à la
[Antonio] Gramsci. Começou a solidificar via anéis burocráticos, os
interesses do governo com camadas empresariais importantes. E por vários
caminhos. Os fundos de pensão também serviram para isso. Até no meu
tempo.
Valor: Nas privatizações...
FHC: Sim, tudo foi aprovado pelos fundos de pensão
que eram controlados pelo PT. É mais do que uma coisa de interesse
menor. É que coincidiu o interesse dos fundos de pensão com o grande
capital. Isso deu hegemonia efetiva. Por que Lula era o queridinho de
todos? Porque ele tinha bolsa família mas tinha também bolsa empresário.
Quando o sistema econômico começou a fazer água qual foi a reação do
bloco empresarial? Essa senhora não serve, tem que ser o Lula. Não foi
ela quem montou isso. E não foi ela quem destruiu o sistema. Foi a
própria expansão desordenada da economia que acabou o dinheiro. Isso
rompeu a hegemonia, as bases de uma política de longo prazo que têm
apoio na estrutura da sociedade. Estamos num momento de transição.
Valor: Para que modelo?
FHC: Não pode ser uma ideia. Tem que se organizar
forças sociais que sustentem um tipo de desenvolvimento. Quando o Aécio
foi candidato, qual era a ideia? Vamos tentar reatar as bases de
crescimento nas cadeias produtivas globais com uma separação mais nítida
entre interesse público e privado para sustentar uma política para
despertar o interesse de outros agentes sociais, econômicos e políticos.
Mas Aécio não ganhou a eleição. E você não faz isso fora do poder.
Vamos ter um período bastante ruim aqui no Brasil.
Valor: É isso que diferencia hoje do impeachment de Collor?
FHC: Acho que sim. Não havia nada disso naquele
período. Foi uma coisa mais circunscrita, uma crise política. A situação
econômica não era brilhante, mas não foi por aí que a coisa arrebentou.
Agora não, temos uma crise econômica, política e ainda não temos uma
crise social. O desemprego cresceu mas ainda não é assustador. A
inflação subiu, está pegando mais que o desemprego, mas ainda há margem
de manobra do governo. Não sou fatalista. Não podemos deixar de contar
com a reação do outro. Está visível que o ministro da Fazenda foi
colocado lá não pela razão, mas pelo coração. E está visível também que
ele tem uma força enorme, pela ideia de que se ele for embora a coisa
explode. O ministro evitou até agora o downgrade do Brasil. E tomara que
evite porque se houver downgrade pagaremos todos nós o preço. Não se
soluciona a questão econômica sem solucionar a política.
Valor: Nesse xadrez político como o senhor vê o papel do PMDB na sustentação do ajuste fiscal quanto na transição para 2018?
FHC: É importante, mas já foi mais do que é hoje
porque o PMDB encolheu numericamente. Tem hoje 66 deputados, o PSDB tem
54, o PT tem 68.
Valor: Juntando os três não dá um terço da Câmara.
FHC: Fica complicado. Como o PMDB tem um núcleo mais
consistente dos seus interesses e tem capacidade de conversar com os
outros, continua exercendo um certo papel. O PSDB vai ter papel
crescente porque tem uma bancada no Senado extremamente competente. E o
Senado é uma caixa de ressonância. Tem 10, 12 senadores de primeiro
plano. Se atuarem em conjunto com o PMDB, há margem para avançar.
Valor: O PSDB ao lado do PMDB pode dar esteio ao ajuste?
FHC: Do ajuste é difícil. Quem vai pagar esse preço é
o PT. Ninguém vai por a mão no fogo para tirar as castanhas. Claro que
não são malucos de negar o necessário. Acho que não haverá
irresponsabilidade de negar o ajuste, mas vai custar para fazer.
Valor: Mas o gesto do senador Renan Calheiros (PMDB-AL) de devolver as MPs não foi saudado pelo PSDB?
FHC: Claro, porque viram imediatamente um gesto de
oposição ao governo mas não quer dizer que vão persistir nisso, nem o
próprio Renan. Mas todas essas possibilidades no Congresso dependem da
Lava-Jato. Não está claro ainda onde vai dar. É um processo longo,
aflitivo. O tempo da aflição da vida da gente não é o da história. Como
estou quase no além me preocupo mais com a história do que com a minha
vida. Vai levar tempo para criar novas forças, mas tem que passar a
limpo. Não dá para tapar o sol com a peneira e fazer conchavo. A
tendência é grande porque há muitos envolvidos. A rua jogou o papel que
tem que jogar. Com a pressão, o entendimento terá que ter bases mais
claras.
Valor: Como o senhor vislumbra um
2018 com um país devassado por ajuste fiscal e por um longo inquérito de
corrupção. Na Itália deu Berlusconi. Aqui dá o que?
FHC: O risco Berlusconi só acontece se não houver
estruturas partidárias com ação política que aglutine. Aqueles que dão
as cartas no sistema político, o PT, o PSDB e o PMDB têm capacidade de
aglutinar. O PT recusou lá atrás o caminho que era o mais razoável que
era aglutinar com o PSDB. Inventaram que o inimigo era o PSDB porque era
neoliberal. Como se eu dissesse agora que a Dilma é neoliberal porque
está fazendo o ajuste. Quem sabe o PT agora um pouco mais sofrido e
reduzido em suas pretensões passa a ser um ator mais razoável no jogo do
poder. Risco sempre há de um caudilho, militar não. O que se precisa é
de um fortalecimento contínuo das instituições que, bem ou mal, estão
funcionando. Não vejo risco à democracia no Brasil.
Valor: O senhor aceitaria um convite da presidente para conversar?
FHC: Nunca recusei chamado de ninguém para
conversar. Nem da Dilma. Na crise de junho, se as coisas não avançaram
não foi por minha conta. Até me arrisquei de tentar conversar. Agora o
momento não é de conchavo. Se a presidente achar que é momento de
chamar, deve ser público. Não se pode conversar sem uma pauta. Não sei
se ela tem força convocatória, porque não tem que chamar só a mim. Tem
que ampliar. Agora temos que digerir, todos nós, esse processo todo e
ver o que vai acontecer nas próximas semanas. Vamos ver se o governo vai
pagar o preço de correr mais fundo esse processo de estabelecimento das
responsabilidades. Não no sentido de ficar açoitando o outro, mas para
se ter uma conversa desarmada. Não posso ir conversar com uma pessoa que
vai para a televisão e fica dizendo: foi FHC. Que é isso? Calei-me
muitos anos sobre esses ataques que sempre me fizeram. Como se a
privatização fosse um crime de lesa pátria. Agora estão privatizando
tudo. Por que num caso é pecado e no outro é louvável? Não dá para achar
que tudo o que o PSDB fez foi errado. Não acho isso do PT, nunca achei.
Tem que baixar a bola.
Valor: Que papel o senhor acha que o Lula deveria desempenhar nesse concerto?
FHC: Lula vai ter que deixar que as coisas
aconteçam. Ele vai ter que explicar melhor toda essa confusão havida aí
com Lava-Jato. Responsabilidade política ele tem. Você não sabe de uma
porção de coisas mas, a partir de um determinado limite, você tem que
agir. Qualquer pessoa medianamente informada em Brasília sabia. Uma
característica do Lula é que em momentos de dificuldade ele some. Eu
entendo que é uma saída tática, mas chegou a um limite, não dá mais. Não
gosto de ficar criticando o Lula, mas acho que todo mundo tem que
assumir seu papel na história e suas responsabilidades.
Valor: Há quem tenha lido na declaração do
senador Aloysio Nunes Ferreira, a de que o PSDB quer sangrar a
presidente, a explicitação de uma estratégia. Foi?
FHC: Foi uma frase momentânea do Aloysio. A mim foi
atribuído a mesma frase num momento de possibilidade de impeachment de
Lula que era mais forte que o atual, quando o Duda Mendonça admitiu que
recebia no exterior, mas não foi isso. Naquele momento Lula simboliza a
ascensão social e política. Fazer o impeachment naquele momento era
dividir o Brasil. Reproduzir UDN e Getúlio é um processo que leva anos
para sanar. Minha razão era histórica, não era para Lula perder a
eleição. Imagino que seja por aí que Aloysio pense. São preocupações
institucionais. Impeachment é um processo político, mas tem que ter
apoio na rua e no Congresso. Não é o julgamento de um crime.
Valor: O senhor discorda da avaliação de que um presidente presidido por Michel Temer facilitaria a volta de Lula?
FHC: Tenho dúvidas sobre a volta do Lula. As coisas
mudam. Não digo sobre ele querer ou não que é problema dele, mas de a
população aceitar. O clima é outro hoje. Se fosse de imediato, a
oposição ganharia, mas imagine o que seria esse processo. São dois que
caem. E fazer uma eleição num momento desses, divide muito. Não estou
dizendo que isso não possa acontecer. A história é mais complicada que a
vontade das pessoas.
0 comentários:
Postar um comentário