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terça-feira, 4 de setembro de 2018

Era um museu triste



Uma casa esvaziada de sua história e de sua mobília
(a mobília é a verdadeira dona de todas as casas),
e ocupada por hóspedes pouco à vontade naqueles salões.


Ali coabitavam milhares de livros e fósseis, aves e múmias, artefatos produzidos por mãos africanas, etruscas, romanas, tupis, num convívio um tanto arbitrário com fragmentos da memória de um país.

Era um museu como os museus costumavam ser, e não são mais. Um museu que era a cara do Brasil, riquíssimo e carente, abundante e confuso. Uma espécie de museu possível, com iluminação deficiente e infiltrações nos tetos e paredes, refém do calor e da umidade que deveriam permanecer lá fora, nos jardins descuidados, junto dos animais ainda mais tristes do triste zoológico ao lado.



O que lhe dava um ar de melancolia era aquele jeito de coisa provisória. A sensação de que o acervo merecia outras salas, outros expositores, outra ambiência, outra luz. Era desolador o Bendegó, solitário, ao pé da escada, feito um extraterrestre caído por acaso no hall de entrada, e esquecido ali.

Tudo lembrava que um dia fora o palácio modesto de um Império pobre, habitado por uma corte sem luxos, com um imperador de casaco puído.


Havia a pesquisa, a produção acadêmica, mas isso ficava fora das vistas do visitante. A esses cabia se encantar com ossos, vasos, sarcófagos, colares, cocares, insetos - e relevar o resto.

Na última noite do museu - enquanto o Magnífico Reitor da UFRJ transferia a culpa para os bombeiros, e os talibãs tupiniquins comemoravam a destruição da Casa Grande, e candidatos de esquerda armavam palanque sobre o cadáver ainda fumegante da instituição para pedir votos - talvez fosse possível vislumbrar D. Maria, a louca, aos gritos pelos corredores em chamas, e Leopoldina tentando salvar os diários aos quais confiara suas dores, e Amélia beijando pela última vez a testa do enteado (“Adeus, órfão-imperador”), e múmias se desfazendo de suas ataduras e da esperança de ressurreição, e ânforas de Pompeia finalmente cumprindo sua sentença de morte na fogueira, e Luzia, nossa avó, refazendo com um cansaço ancestral sua jornada de volta ao antes da História.



Entre nuvens de borboletas, araras azuis, albatrozes e tucanos – mortos pela segunda vez -, a imperatriz Teresa Cristina terá visto, de novo, sumir o chão aos seus pés, como quando o marido, Pedro, trouxe para dentro daquela casa a amante Luísa, Condessa de Barral. Outro Pedro terá tentado escapar, escoltado por lagartos, besouros e pterossauros, para junto da Marquesa de Santos, pelo túnel (lendário) que lhe teria facilitado tantas fugas noturnas.

Milhões de páginas terão se consumido. Milhares de cestos, tambores, as máscaras dos “encantados”, mantos, chocalhos, diademas, armaduras. Xangôs de ferro derretidos na fornalha em que se transformou a casa que deveria ter-lhes servido de abrigo. E documentos, arquivos, imagens, mistérios.


Como em Hiroshima, onde se manteve o esqueleto calcinado da Prefeitura, ou em Berlim e Lisboa, com igreja e convento perpetuados em ruínas, talvez se devesse deixar o Paço de São Cristóvão tal como amanheceu hoje – alvenaria coberta de fumaça - numa espécie de memorial do descaso, até sermos capazes não só de construir, mas de preservar o construído.

Era um museu triste, e nem por isso menos amado, lar de um acervo que se perdeu para sempre. Um Museu Nacional cercado de hidrantes secos, e que – como a Biblioteca Nacional - não tinha sequer alvará do Corpo de Bombeiros.

03 de setembro de 2018




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