Com
a adoção dessa ferramenta, a lei brasileira segue uma tendência mundial
no combate ao crime, mas já há quem queira restringir a conquista
Por Mariana Barros VEJA.COM
No começo, era apenas um despiste. "Espalhamos que já tinha gente na
fila para colaborar, mas a gente ainda não tinha nada." A confissão,
divulgada meses atrás, é do procurador Carlos Fernando Lima, considerado
o cérebro da força-tarefa de Curitiba, quando lembrava como ele e os
colegas conseguiram atrair os primeiros suspeitos da Lava-Jato para
inaugurar os hoje tão famosos, tão temidos e tão aguardados acordos de
delação premiada.
Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras, abriu a
fila. Seu acordo foi homologado pelo juiz Sergio Moro em 27 de agosto de
2014, uma quarta-feira. Daí em diante, um carrossel virtuoso começou a
girar com uma delação puxando a outra, e alguns acusados apressando-se
para assinar a delação antes que não houvesse mais novidades a revelar.
Na semana passada, a Lava-Jato tinha 25 acordos homologados. Mas, como
se tornou habitual nesse escândalo, as expectativas sempre se voltam
para o próximo acordo.
Na mira dos procuradores está o empreiteiro Léo Pinheiro,
ex-presidente da OAS, preso há nove meses. Desde o primeiro contato com o
Ministério Público, seus advogados estão negociando os termos de uma
delação cujo potencial explosivo é medido em escala atômica. A
princípio, o empreiteiro resistia à delação na esperança de pegar até
dois anos de prisão em regime fechado, limite que dizia suportar.
Na
semana passada, o juiz Sergio Moro condenou Pinheiro a dezesseis anos de
prisão, dos quais pelo menos dois e meio terão de ser cumpridos em
regime fechado. A condenação, um pouco maior do que o esperado, pode
quebrar suas últimas resistências a abrir o bico. Outros dois, ambos
ex-diretores da Petrobras, ainda não assinaram acordo, mas já estão em
estágio avançado conversas para informar os procuradores sobre o que
podem oferecer em troca de redução de pena. São eles: Renato Duque,
homem do PT na direção da Petrobras, e Nestor Cerveró, o propineiro de
Pasadena.
O volume de acordos de delação premiada na Lava-Jato é algo jamais
visto em qualquer investigação criminal no país. Resulta da confluência
de um acontecimento de 1990 com outro de 2004. Em 1990, o instituto da
delação premiada apareceu pela primeira vez na legislação brasileira, na
nova lei dos crimes hediondos. Foi ampliado nove anos depois para todos
os demais crimes, deixando de se restringir aos hediondos.
Em 2004,
quando trabalhava no caso Banestado, escândalo de remessa ilegal de
dinheiro para o exterior, um jovem juiz homologou uma das primeiras
delações feitas nos moldes atuais. Era Sergio Moro. O delator era o
mesmo Alberto Youssef de agora, o doleiro que se tornou talvez o único
brasileiro a ter feito não uma, mas duas delações premiadas. Juntando a
lei de 1990, o juiz de 2004 e a megarroubalheira na Petrobras,
produziram-se as condições para o recorde: 25 acordos de colaboração, e a
conta ainda não terminou.
A delação premiada surgiu como um antídoto contra a globalização do
crime. Com organizações criminosas transnacionais cada vez mais
sofisticadas, os legisladores, sobretudo na Itália e nos Estados Unidos,
passaram a pensar em instrumentos capazes de chegar aos chefes desses
mamutes do crime: as máfias, os cartéis da droga, os grupos terroristas,
as quadrilhas de corruptos.
A colaboração de um acusado em troca da
redução da pena surgiu como o único meio de quebrar o código de silêncio
dos criminosos e pôr as mãos no alto-comando. Nos últimos trinta anos,
os Estados Unidos acumularam vasta experiência nesse campo. Desde a
Operação Mãos Limpas, na década de 90, uma gigantesca ação contra
políticos corruptos, a Itália também avançou.
O relativo sucesso da
delação premiada no combate ao crime organizado levou a ONU a lançar uma
convenção anticorrupção cujo texto sugere explicitamente que os
países-membros adotem algum tipo de recompensa aos criminosos que
denunciam comparsas. Assim, a delação premiada começou a proliferar pelo mundo.
O Brasil
assinou a convenção no ano do seu lançamento, em 2003, e promulgou-a
três anos depois. A novidade, no entanto, está longe de ser consensual.
Os advogados, em geral, e os criminalistas, em particular, consideram a
delação premiada um instrumento antiético e imoral porque a negociação
da pena corrompe o processo penal, cuja essência é comprovar, ou não, a
culpa do réu, e não colocá-la numa barganha. Também lhes desagrada o
fato de a delação premiada levar o acusado a renunciar a um direito
fundamental - o direito a um processo justo -, pois a sentença é
previamente acertada.
As reservas são mais fortes em países como o
Brasil, cujo ordenamento jurídico vem da tradição romana, em
contraposição ao de tradição inglesa. Em 2003, quando o governo da
França propôs uma reforma jurídica que copiava parte do sistema dos
Estados Unidos, houve uma gritaria geral.
Mesmo na pátria mundial da
cidadania, os franceses acabaram se rendendo à dureza da realidade do
crime. A Assembleia Nacional aprovou as mudanças, inclusive a delação
premiada. Hoje, um francês pode ficar até quatro dias preso sem acusação
formal, algo impensável até uma década atrás.
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