Quando saiu do banho, naquela manhã de 24 de maio de 2005, o deputado
Roberto Jefferson deu com o poderoso ministro da Casa Civil do governo
Lula, José Dirceu, sentado em sua sala, acompanhado do líder do governo
no Congresso, Aldo Rabelo.
– Bom dia, senhores – cumprimentou frio.
Se tivesse sido consultado, não o teria deixado subir.
No dia anterior,
a empregada Elza lhe dissera que ele e mais quatro ministros estavam na
portaria com uma urgência, mas ele os mandara voltar da porta, porque
tinha chegado ao limite com o ministro.
Mesmo com o presidente Lula, que
havia ligado à noite para pedir-lhe que retirasse a assinatura do
pedido de uma CPI para investigar a corrupção nos Correios, havia sido
frio:
– Essa CPI vai ser muito ruim para o governo, muito ruim, muito ruim... – apelou o presidente, entre outras coisas.
– Eu sei. Mas, moralmente, não me resta outra saída, presidente.
Mas nesta manhã eles conseguiram entrar por uma traição do amigo José
Múcio, que ligara antes do banho querendo uma conversa urgente e avisara
aos dois que ele estava em casa.
O porteiro e a empregada não tiveram
peito para segurá-los na portaria.
Sim, estava sozinho. Não tinha apoio de nenhum amigo nem dentro do seu partido, o PTB.
José Dirceu, que o vinha evitando nos últimos dias e tratando direto
com os deputados de seu partido os interesses do governo, inclusive
evitar a CPI, agora faria o que fosse preciso para que ele retirasse sua
assinatura.
– Roberto, você não vai assinar essa CPI – foi direto ao assunto. –
Você não vai fazer isso com a gente.
Essa CPI é contra o governo, é para
paralisar o governo. É pra atingir o presidente Lula e vai nos atingir.
Roberto sentou-se para encará-lo de frente.
– Quanto a isso não tenho dúvida, Zé, porque eu sou a escada, sou
ponte. O alvo é você, o alvo é o Delúbio, o alvo é o Silvinho Pereira –
referiu-se ao tesoureiro e ao secretário do PT que vinham fazendo
negócios em nome do governo sob orientação da Casa Civil. – A CPI vai
atingir vocês. Mas não posso sair disso sem alma, não vou virar zumbi.
Minha honra pessoal foi atingida.
O deputado se sentia no fundo do poço desde que a revista
Veja
divulgara, havia 10 dias, uma gravação em vídeo em que seu indicado nos
Correios, Maurício Marinho, embolsava R$ 3 mil reais de propina e se
gabava de suas relações com ele.
A partir daí, toda a grande imprensa,
principalmente a revista e
O Globo
, haviam desabado em cima de sua reputação e ele percebera que havia
dedo da Abin e da Casa Civil de José Dirceu, em conluio com jornalistas,
para jogar todas as mazelas do governo nas costas do PTB.
– Zé, não posso confiar mais em você, porque estou vendo sua
assinatura, sua impressão digital nesse noticiário todo contra mim. É
uma pancadaria, é um jogo montado pelo governo e tem a Abin no meio.
– Não diga isso, Roberto, eu jamais faria isso.
Por sorte, um dia depois da publicação bomba da revista, um anônimo
deixou em sua porta uma cópia da gravação integral, de uma hora e 54
minutos, num envelope amarelo.
Imaginou que fosse coisa de arapongas
velhos da agência de inteligência do governo, a Abin, que ganhavam
dinheiro de todos os lados em Brasília para montar dossiês.
Possivelmente, os mesmos que gravaram poderiam ter enviado a sua cópia,
interessado em negócios futuros.
Ao vê-la e revê-la, convenceu-se de que, mais do que flagrar o
funcionário, os arapongas pretendiam incriminá-lo.
Faziam perguntas
recorrentes sobre sua influência.
E de que o repórter Policarpo Júnior, de
Veja
, como os arapongas, evitava ir além das denúncias na diretoria de
Marinho e chegar à poderosa diretoria de Operações, controlada por
Delúbio e Silvinho, onde de fato se davam os grandes negócios suspeitos
da instituição.
"Ele está protegendo o PT", pensou.
Uma investigação oficial da Abin,
patrocinada pelo governo, tinha sido paralisada também quando chegou
perto dessa diretoria.
– Eu vejo a sua mão, Zé. É coisa sua. Você sacaneou o PTB por causa dos
conflitos que se instalaram entre nós, pelo acordo não cumprido do
repasse de campanha e pelas nomeações que foram cumpridas e não foram
feitas.
Vocês estão me sufocando porque falei ao Lula sobre o Mensalão e porque não querem que o Dimas Toledo saia de Furnas.
Em janeiro, ele dissera ao presidente, na presença de Dirceu e de seu
correligionário Walfrido dos Mares Guia, que Delúbio Soares iria colocar
uma dinamite na sua cadeira.
Informou que eles estavam comprando
deputados para fortalecer as bases do governo e que ele pessoalmente
estava sendo massacrado porque não aceitara a oferta e orientara seus
correligionários a fazer o mesmo.
Cobrou 16 dos 20 milhões que o partido
devia ao PTB, por uma promessa de campanha, e insistiu que as
negociações que lhe interessavam era a co-participação no governo,
através de nomeações de cargos nas estatais, que a Casa Civil vinha
postergando.
– Não, Roberto, você está enganado, eu não fiz isso, você está sendo
injusto comigo. Não sou um homem capaz de fazer uma coisa dessas.
No caso do presidente de Furnas, Dimas Toledo, ele havia acertado a sua
substituição por um homem de seu partido, Francisco Spirandel, numa
outra reunião com Lula, em abril. Só que Dirceu vinha atuando nos
bastidores para inviabilizá-la.
– Isso não é papel de homem, Zé. Vocês jogam fora os companheiros de
aliança como se fossem bagaço de laranja depois que já chuparam o caldo.
De fato, estava tudo acertado para a eleição de Spirandel, na
assembleia de 16 de maio.
Dimas Toledo tinha laços com vários partidos e
fazia em Furnas uma caixinha de R$ 3 milhões mensais, cujo maior
favorecido era o PT.
Mas o presidente Lula andava possesso com ele, por
causa de seus favorecimentos ao governador Aécio Neves.
No meio da
assembleia, porém, chegou uma ordem da ministra das Minas e Energia,
Dilma Roussef, para suspender tudo.
Nessa tarde, em meio à pressão da
imprensa contra o seu partido e em favor de apurações nos Correios, ele
decidiu colocar sua assinatura no pedido de CPI que José Dirceu agora
quase se ajoelhava para tentar retirar.
– Vejo sua mão nessa porra toda, Zé. E agora você vai ter que consertar.
– Roberto, isso vai passar. Vamos acertar por cima, vamos passar a borracha e fazer um acordo.
Aldo Rabelo ficou quieto todo o tempo.
Então Dirceu informou que o
governo já estava trabalhando para inocentá-lo das denúncias nos
Correios, no inquérito na Polícia Federal.
A substituição de Dimas por
Spirandel ocorreria num momento mais oportuno, porque havia uma enorme
pressão de políticos, entre os quais o presidente da Câmara, Severino
Cavalcanti, para mantê-lo.
Na mesma manhã, Maurício Marinho estava sendo interrogado na PF.
Por
volta de 11h, no meio da conversa, a Polícia Federal já havia divulgado
em seu site um boletim em que o diretor assumia integral
responsabilidade pela negociação da propina e inocentava Roberto
Jefferson, afirmando que, na gravação, só citara o deputado para se
valorizar profissionalmente.
Como Marinho depunha desde as 10h num depoimento sigiloso que se
arrastaria até a tarde, Jefferson entendeu que a divulgação do boletim
menos de uma hora depois só poderia ter o objetivo de convencê-lo.
Seu
advogado o trouxera no meio da conversa com Dirceu.
Posteriormente,
ficaria sabendo que o delegado do caso saia frequentemente da sala para
dar telefonemas e dar curso ao esquema já armado com o governo: na hora
que Marinho o inocentasse, fariam a divulgação imediata para a imprensa,
para dar um bom argumento a Dirceu na negociação pela retirada da
assinatura.
– Bom, se é assim, não tenho problema em retirar a assinatura da CPI – rendeu-se, mas acrescentou um pedido.
Para a completa restauração de sua honra, pediu a Dirceu que interviesse junto à revista
Veja
e ao
Globo
, seus principais algozes e que, no seu entendimento, estavam aliados à Casa Civil.
–
A Veja está fazendo um verdadeiro linchamento.
– Roberto, na
Veja
eu não tenho nenhuma influência, porque a revista é tucana.
– Mas e
O Globo
?
– O
Globo
eu acerto por cima, dá para segurar.
– Então não tenho problema de recuar. Tiro a assinatura, mas você me dá uma saída honrosa. Estou sendo linchado nisso.
– Vou tentar, Roberto.
O deputado deu entrevista à imprensa e reuniu os companheiros de
bancada pedindo o mesmo, embora inutilmente porque todos já resistiam a
deixar o governo e nunca apoiaram a decisão de seu presidente de
rejeitar o dinheiro do PT.
No dia seguinte, porém, a oposição conseguira
as assinaturas necessárias à instalação da CPI dos Correios e o
noticiário contra o deputado só recrudesceu.
Apesar de Dirceu ter prometido que dava para controlar O Globo, no fim
de semana, o jornal e a revista Época, do mesmo grupo editorial,
circularam com páginas pesadas de denúncias envolvendo o deputado, seus
familiares e suas relações em outros órgãos de influência do PTB.
"A mídia está envenenada – pensou. – Eles têm que dar sangue para os chacais, e o sangue vai ser o meu", pensou.
Como agora sua posição já não tinha importância, porque a CPI fora
instalada e não passava de um peso morto para o governo, iriam jogar
todas as denúncias no seu colo e no partido.
Na sexta-feira, 4 de junho, os jornais deram que o ministro da Justiça,
Márcio Thomaz Bastos, faria na segunda-feira (6) um pronunciamento à
Nação, em cadeia de rádio e TV, para tentar impedir a CPI na Comissão de
Constituição e Justiça.
Iria também desmontar o esquema de corrupção na
Eletronorte, nos Correios e no Instituto de Resseguros do Brasil –
exatamente as três estatais em que o PTB tinham cargos influentes.
"Estão evacuando o quarteirão para implodir a mim e o PTB".
E o pior, agora estava claro que o presidente Lula também estava no jogo para destruí-lo.
"O majestático ministro da Justiça não faria isso sem autorização do chefe."
Já não engolira uma entrevista do presidente do PT, José Genoíno, no
meio da crise, dizendo que o PT precisava escolher melhor os partidos da
base. "Precisamos requalificar a base".
Agora, via que o presidente
também estava no jogo.
Tentou em vão falar com José Dirceu, que estava se preparando para viajar à Espanha. Ligou para Walfrido dos Mares Guia:
– Estou tentando falar com o Dirceu e não consigo. O ministro vai atirar no PTB na segunda-feira e acabar com a gente.
Só então recebeu uma ligação de Dirceu, ainda no aeroporto.
– Dirceu, você não devia estar viajando agora. A hora é horrível para
você viajar. O ministro vai colocar essa bomba no colo da gente. É pra
acabar com o PTB.
– Calma.
– Estou calmo.
– Olha, nós temos que ver o lado do Silvinho e do Delúbio, Roberto. Vê lá o que você vai fazer.
Ora, pensou. "Então eu estou prestes a ser massacrado em praça pública e ele preocupado com o Silvinho e com o Delúbio...".
– Olha, Dirceu. Eu quero que o Silvinho e o Delúbio se danem. Na volta
da sua viagem à Espanha, você terá uma surpresa. Vai com Deus, porque
quando você voltar a notícia vai ser outra.
No sábado, suas assessoras ainda tentaram demovê-lo pela última vez:
– Calma. Espera.
Mas estava decidido:
– Não vou esperar mais nada, vou botar pra fora essa história do
Mensalão. Vou explodir, vou arrebentar com tudo. Eu avisei a eles e
avisei ao país que ia explodir tudo. Não posso ficar no colo com um
crime que não pratiquei.
– Você pode ser cassado.
– Não importa mais. Mais importante que o mandato é a minha honra pessoal.
Discutiram em seguida a qual dos três grandes jornais faria a denúncia,
para ser pubicada na mesma segunda-feira do pronunciamento do ministro
da Justiça.
Descartaram
O Globo
, porque, argumentou, estaria se comportando como Diário Oficial.
O
Estado de São Paulo
, embora isento, também estava embarcando na onda contra ele.
Restava a
Folha de S. Paulo
, que, na sua opinião, vinha tratando a crise com mais cautela, sem embarcar na versão do governo.
A assessora Íris Campos entrou em contato com Renata Lo Prete, editora do
Painel
, de notas de bastidores da política em Brasília.
E, no domingo à
tarde, enquanto Márcio Thomaz Bastos preparava seu pronunciamento e José
Dirceu caminhava pela Espanha, possivelmente pensando em Sílvio Pereira
e Delúbio Soares, o deputado Roberto Jefferson contava à repórter do
jornal de maior circulação do país que o PT carregava malas de dinheiro
para ampliar a base aliada, comprando deputados de pequenos partidos,
porque não queria dividir o poder nos ministérios.
Na segunda-feira, 6 de junho, no mesmo dia do pronunciamento do ministro da Justiça à Nação, a Folha circulou com a manchete:
"PT pagava mesada de R$ 30 mil a partidos, diz Jefferson"
A república petista começava a desmoronar.
(Com informações do livro
Nervos de Aço
, depoimento de Roberto Jefferson a Luciano Trigo, editora Topbooks.)