TODAS AS CARAS DE DIRCEUVejaNa mais completa e surpreendente biografia do petista, as aventuras, traições, amores e tramoias do líder estudantil bonitão e mulherengo que virou o segundo homem mais poderoso da República — e que agora se encontra a caminho da prisão.
Em 3 de janeiro de 2003 um mineiro nascido em Passa Quatro, ex-líder estudantil e ex-militante de esquerda perseguido pela ditadura militar se tornava o segundo homem mais importante da República. José Dirceu de Oliveira e Silva havia sido nomeado ministro-chefe da Casa Civil do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o operário que chegou ao Palácio do Planalto. Juntos, esses dois homens de biografia extraordinária prometiam mudar o Brasil. O primeiro ato que Dirceu assinou no cargo foi bem menos grandioso, mas revelador de seu caráter. Era uma portaria que mudava a ordem de entrada dos ministros nas solenidades do palácio. Historicamente, depois do presidente da República, vinha o titular do Ministério da Justiça, por ter sido a primeira pasta a ser criada. Dirceu transferiu a prerrogativa para si: quem apareceria caminhando logo atrás do presidente seria ele, o chefe da Casa Civil — que, a partir de então, teria também a primazia no uso de carros oficiais e de aviões da Força Aérea Brasileira.
De autoria do jornalista Otávio Cabral, editor de VEJA, Dirceu—A Biografia (Record; 364 páginas; 39,90 reais, ou 27 reais na versão digital) conta esta e outras tantas histórias definidoras da personalidade do biografado, o que faz do livro um daqueles difíceis de largar. Ao terminá-lo o leitor se pergunta como não adivinhou antes o desfecho. Está lá — revelado na forma de decisões imperiais, arroubos de grandeza e também viagens em jatinhos e noitadas com belas mulheres — o imenso apreço de Dirceu pelo poder e tudo o que dele decorre. Também estão no livro a ojeriza do petista pela imprensa que não se verga à sua vontade e o embrião do herói sem causa em que se transformaria o líder estudantil mulherengo e bonitão o “Ronnie Von das massas”, como era chamado na década de 60. As revelações do autor e a sagacidade com que observa detalhes da conduta e do passado do agora mensaleiro condenado antecipam o que hoje parece evidente: o norte moral de José Dirceu sempre foi regido por outra bússola.
Para escrever a mais completa e surpreendente biografia de um dos mais complexos e enigmáticos personagens da história recente do Brasil, Cabral analisou 15000 páginas de documentos garimpados no acervo de nove arquivos. Entrevistou 63 pessoas, anônimas e públicas, cuja confiança conquistou ao longo dos treze anos em que atua como repórter de política — primeiro pela Folha de S.Paulo e, desde 2004, em VEJA.
O livro começa em Passa Quatro — onde o indisciplinado filho do dono de uma gráfica, terror da vizinhança e contumaz torturador de gatos diz à mãe, Olga, o que ele repetiria pela vida afora: “Um dia serei presidente da República”. Narra sua mudança para São Paulo e os primeiros envolvimentos com a política e as mulheres, duas paixões que o dominariam ora como obsessão, ora como problema. As últimas, se não chegaram a ser a sua ruína, ficaram peno disso. À conhecida história da Maçã Dourada, a bela agente do Dops infiltrada que seduziu o jovem cabeludo e quase encerrou sua carreira de líder estudantil Cabral acrescenta outras, como a da estonteante dançarina chinesa que, nos anos 60, fez o então caipira recém-chegado de Minas Gerais perder a cabeça—além de uma boquinha na TV Tupi como roteirista e ator.
Se as mulheres mudaram o destino de Dirceu, ele se vingou do destino sendo cruel com aquelas que o amaram—e não foram poucas. Três dos seus quatro casamentos terminaram com uma traição (da parte dele). Dois de seus quatro filhos foram concebidos fora das cobertas conjugais. E, sobre o período em que, se sabia, ele havia levado uma vida dupla escondendo da primeira mulher, Clara Becker, sua identidade de foragido da ditadura militar, Cabral acrescenta uma informação estarrecedora. Dirceu, naquela época, não levava uma vida dupla, mas tripla. Além do nome real, que não podia ser revelado, e do disfarce de pacato comerciante do Paraná, ele mantinha outra mulher e outra identidade em São Paulo, para onde viajava com frequência a pretexto de comprar roupas para a sua loja, a Magazine do Homem.
Dirceu não traz apenas revelações surpreendentes, mas graves também. Entre os documentos inéditos obtidos pelo autor está o que aponta que, em 1968 partiu do então líder estudantil José Dirceu de Oliveira e Silva a ordem para sequestrar e manter em cárcere privado — com as mãos algemadas, presas ao cano de uma pia e submetido a “inquéritos” intermitentes — o estudante João Parisi . Integrante do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), Parisi foi descoberto por militantes do movimento estudantil quando tentava se passar por um deles, em meio à batalha da Rua Maria Antônia, que opôs estudantes da Mackenzie aos de filosofia da USP. Igualmente inédito e importante é o depoimento de uma testemunha que aponta a participação de Dirceu no assassinato de um sargento da Polícia Militar em São Paulo, em 1972. O crime ocorreu em uma das ocasiões em que ele voltou do exílio de Cuba juntamente com outros integrantes do Molipo, o grupo terrorista que mais tarde seria dizimado pela repressão.
O capítulo em que Cabral relata a ascensão de Dirceu na política coincide com a guinada do PT para o pragmatismo, a ávida adesão da sigla ao fisiologismo e o começo do deslumbramento geral. É quando a fumaça dos charutos cubanos começa a exalar das altas rodas do petismo e as festas do partido, antes animadas a cachaça, passam a contar com a alegre presença das “meninas” de Jeany Mary Comer, a cafetina da República. Dirceu bem que desconfia que não vai dar certo. Ao tomar conhecimento de que o seu protegido Silvio Pereira havia contratado quinze garotas de Mary Corner para comemorar com catorze amigos seu aniversário na suíte presidencial de um hotel de Brasília, Dirceu esbraveja: “Sacanagem a gente faz sozinho ou num grupo pequeno. Vocês estão deslumbrados com o poder, vão acabar se f...” . Tendo moldado o PT à sua imagem e semelhança, Dirceu começava a achar feia a imagem no espelho.
O livro de Cabral desnuda a simbiótica e tensa relação entre José Dirceu e Luiz Inácio Lula da Silva, fenômeno crucial para a compreensão do PT e da forma como o partido conquistou o poder no Brasil. Lula, estrela emergente do sindicalismo, e Dirceu, ex-perseguido político recém-saído das trevas da clandestinidade não mais se largaram. Mas a convivência entre os dois titãs do PT nunca foi um passeio no campo — e incluiu até chantagem. Dirceu e Lula caminharam lado a lado por 33 anos sem tirar a mão do coldre. Um jamais confiou inteiramente no outro, mas a relação de mútua destruição assegurada e mútuo sucesso bastante provável amalgamou a dupla. Nesse arranjo, cabia a Lula brilhar no palanque, enquanto Dirceu fazia o serviço pesado — e sujo quando preciso. A divisão de trabalho é ilustrada pela história que o deputado Chico Alencar contou ao autor atribuindo-a a Lula em 1997: “Cansei de rodar minha bolsinha esfarrapada por aí. Para ganhar a eleição, vou precisar de aliança e grana. Dei todo o poder para o Zé Dirceu arrumar isso. Falei: Zé, articula e faz. Pode até contratar o Duda Mendonça. Não quero saber como você fez, só quero que a gente ganhe a Presidência’”. A vitória veio duas eleições depois e, durante os dois anos que se seguiram a ela, Dirceu “fez” à vontade, como atestou o Supremo Tribunal Federal. Lula foi alertado por pelo menos três pessoas dos métodos adotados por seu número 2 (o livro de Cabral acrescenta um quarto peso pesado à lista). Diante do que lhe relataram seus interlocutores, o ex-presidente comportou-se conforme antecipara ao deputado Alencar: oficialmente, nunca soube de nada.
Nas páginas de Dirceu, não se verá em nenhum momento o personagem defendendo a fé comunista, discutindo O Capital (que não leu) ou debruçando-se sobre questões da República. Dirceu não perde tempo com ideologias. Trama, conspira, dissimula, confronta. “Faltam a José Dirceu alguns dotes intelectuais”, observou em carta a uma amiga a militante Iara Iavelberg, primeiro grande amor do petista.
O livro termina com a condenação do ex-ministro no julgamento do mensalão e suas preparações para ir para a cadeia. Dirceu está então com 67 anos. Foi sentenciado a dez anos de prisão e ficará inelegível até 2031, quando terá completado 85 anos. Parece irrecorrivelmente perdido o projeto de poder pessoal, a única causa pela qual genuinamente lutou. Dirceu é uma reportagem magistral sobre a vida de um anti-herói sem escrúpulos que, como tantos outros na história política, escondeu a ambição atrás de um falso ideal.10/06/2013
quinta-feira, 13 de junho de 2013
A VERDADE SOBRE JOSÉ DIRCEU
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