Tomo de empréstimo o título de um livro de Henri Lefebvre, escritor francês que rompeu com o Partido Comunista em 1958 e publicou as suas razões para tanto nesse livro de 1959
Fernando Henrique Cardoso
O Estado de S.Paulo
Anos mais tarde, em 1967-1968, fui colega de Lefebvre em Nanterre, quando demos início - juntamente com Alain Touraine, Michel Crozier e com o então quase adolescente Manuel Castells - a uma experiência de renovação da velha "Sorbonne", na área das Ciências Humanas.
Sempre gostei do título do livro de Lefebvre e agora, ao escrever estas linhas - sem nenhuma pretensão a devaneios psicanalíticos -, recordo-me também de que Lefebvre tinha uma grande semelhança física com meu pai. Mas o fato é que há momentos para fazer um balanço.
No caso, Lefebvre descontava o que o Partido Comunista lhe tirara ou ele do mesmo e via o que sobrava: a experiência dramática das revelações que Nikita Kruchev fizera dos horrores stalinistas, somadas à invasão da Hungria, provocaram uma remexida crítica na intelectualidade europeia, que não deixou de afetar a brasileira e a mim próprio.
Hoje, ao completar 80 anos de idade, diante do fato inescapável de que o tempo vai passando e às vezes não deixa pedra sobre pedra, eu, que não sou dado a balanços de mim mesmo (nem dos outros), senti certa comichão para ver o que resta a fazer e a soma das coisas que andei fazendo.
Mas não se assuste o leitor: o espaço de uma crônica não dá para arrolar o esforço de oito décadas para tentar construir algo na vida, quanto mais para listar o muito de errado que fiz, que pode superar as pedras que eventualmente tenham ficado em pé. Além do mais, prefiro olhar para a frente a mirar para trás.
Quando algum repórter me pergunta o que acho que ficará de mim na História, costumo dizer, com o realismo de quem é familiarizado com ela, que daqui a cem anos provavelmente nada, talvez um traço dizendo que fui presidente do Brasil de 1995 a 2003.
Quando insistem em que fiz isso ou aquilo, outra vez o meu realismo - não pessimismo nem hipocrisia de modéstia - pondera que, no transcorrer da História, quem sobra nela é visto e revisto pelos pósteros ora de modo positivo, ora negativo, dependendo da atmosfera reinante e da tendência de quem revê os acontecimentos passados.
Portanto, melhor não nos deixarmos embalar pela ilusão de que há pedras que ficam e que serão sempre laudadas. Além do mais, dito com um pouco de ironia, se o julgamento que vale para os homens políticos e mesmo para os intelectuais é o da História, de que serve o que digam de nós depois de mortos?
Como não posso agradecer a cada um pessoalmente, nem desejo deixar de lado alguém, nem os muitos que me disseram pessoalmente palavras de estímulo ou as registraram por cartas, e-mails ou na web, aproveito esta página de jornal para reiterar que não sei como exprimir o quanto a solidariedade dos contemporâneos me emocionou.
Não me posso queixar da vida. Vivi a maior parte do tempo dias alegres, mesmo que muitas vezes tensos. Assim como senti as perdas que fazem parte de sobreviver. Perdi muita gente próxima ou que admirava a distância nestes 80 anos. Pais, irmãos, mulher, amigos, amigas, companheiros de vida acadêmica e política.
Ainda agora, para que nem tudo fossem rosas, perdi às vésperas de meu aniversário um companheiro de universidade com quem convivi cerca de 50 anos, Juarez Brandão Lopes. E no momento em que escrevo estas linhas veio a notícia da morte de Paulo Renato Souza, companheiro, colaborador, grande ministro da Educação, colega de exílio.
As perdas, para quem está vivo, são relativas. Aprendi a conviver na memória com as pessoas queridas e mesmo com algumas mais distantes com as quais "converso" vez por outra no imaginário para reposicionar o que penso ou digo.
Tomo em conta o que diriam os que não estão mais por aqui, mas deixaram marcas profundas em mim. Na soma, não cabe dúvida, mantive mais amigos que adversários.
Não sinto rancor por ninguém, talvez até por uma característica psicológica, pois esqueço logo as coisas de que não gosto e procuro me lembrar das que gosto e pelas quais tenho apego.
Por fim, para não escrever uma página muito água com açúcar, se me conforta ter tantos amigos e receber deles tanto apoio, e se prezo a amizade acima de quase tudo, devo confessar que, apesar de meu pendor intelectual ser forte, no fundo, sou um Homo politicus.
Herdado de meus pais e de algumas gerações de ancestrais, vivo a vida na tecla do serviço ao público, da polis, e para mim o público hoje não é apenas o brasileiro, mas tem uma dimensão global.
Pode parecer "coisa de velho", mas o fato é que a esta altura da vida estou convencido, sem prejuízo das crenças partidárias e ideológicas, de que cada vez mais, como humanidade, como cidadão e como seres nacionais, simultaneamente, nos estamos aproximando de uma época na qual ou encontramos alguns pontos de convergência, uma estratégia comum para a sobrevivência da vida no planeta e para a melhoria da condição de vida dos mais pobres em cada país, ou haverá riscos efetivos de rupturas no equilíbrio ecológico e no tecido social.
Não é o caso de especificar as questões neste momento. Mas cabe deixar uma palavra de advertência e de otimismo: é difícil buscar caminhos que permitam, em alguns temas, uma marcha em comum, mas não é impossível.
Tentemos.
Vi tanta boa vontade ao redor de mim nestas últimas semanas que a melhor maneira de retribuir é dizendo: espero poder ajudar todos e cada um a sermos mais felizes e dispormos de melhores condições de vida.
Guardarei as armas do interesse pessoal, partidário ou mesmo dos egoísmos nacionais sempre que vislumbrar uma estratégia de convergência que permita dias melhores no futuro.
Com confiança e determinação, eles poderão vir.
SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA
03 de julho de 2011
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