Vladimir
Aras, secretário de Cooperação Internacional da Procuradoria-geral da
República, afirma que acordo de delação premiada é o principal mecanismo
para conseguir trazer de volta os bilhões de reais desviados
Por: Laryssa Borges, de Brasília VEJA.com
Desde
a primeira delação premiada da Operação Lava Jato, celebrada em 27 de
agosto de 2014 pelo ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, o juiz
Sergio Moro passou a receber dezenas de recursos assinados por renomados
advogados de empreiteiros, políticos, lobistas e operadores contra o
uso desse recurso. Nas teses para tentar desmontar as investigações, a
estratégia é sempre a mesma: comparar o delator a um traidor. Para o
procurador da República Vladimir Aras, secretário de Cooperação
Internacional da Procuradoria Geral da República e professor de Processo
Penal da Universidade Federal da Bahia, acordo de delação premiada é o
principal mecanismo para conseguir repatriar os bilhões de reais
desviados pela quadrilha instalada na Petrobras. "Apenas resvalamos nos
valores [desviados]. E só conseguimos por causa da tão criticada delação
premiada", diz. Leia a seguir trechos da entrevista ao site de VEJA. Depois da Lava Jato, ainda existe um lugar onde cidadãos e empresas possam se considerar imunes e impunes?
É cada vez mais difícil porque as coisas vão mudando. Concretamente
sobre a Lava Jato, por que conseguimos repatriar 485 milhões de reais da
Suíça? Isso se deve a uma estrutura global porque a própria Suíça, que
há dez anos era o lugar perfeito para se esconder dinheiro, passou a
sofrer pressão europeia e passou a ser pressionada também pelos vínculos
jurídicos que firmou em tratados. A Suíça hoje é um outro país. Na Lava
Jato, está colaborando, já devolveu dinheiro e se comprometeu a
devolver mais. Quando se esperaria que o Ministério Público de um país
tão cioso de seu sigilo bancário viesse a ajudar o Brasil? Temos também o
Gafi (O Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o
Financiamento do Terrorismo) como mecanismo de pressão, a consciência
dos cidadãos, que não aceitam mais que seus países sejam vistos como
refúgios, a necessidade de combater o terrorismo. O mundo percebeu que
essas vias para transmissão de valores para financiamento do terrorismo
eram as mesmas que viabilizavam a ocultação de dinheiro sujo de
narcotráfico e de corrupção. Então juntou a consciência global contra a
corrupção com a consciência global contra o terrorismo. Criou-se uma
força irresistível.Existem alguns países que não são cooperativos, como
Somália, Coreia do Norte, estados falidos ou ditaduras absolutas. Mas
fora isso não existe mais um lugar em que o criminoso possa dizer 'estou
seguro'. O Uruguai está mudando, o Panamá está mudando. O
fortalecimento das instituições nesses países, a democracia nesses
países, a imprensa livre, a consciência pública ampliada pelo acesso à
informação. Qual proporção as autoridades já conseguiram recuperar?
Apenas resvalamos nos valores. Só conseguimos por causa da tão
criticada delação premiada, que prefiro chamar de colaboração premiada.
Quando se fala de delator, já existe uma ideologia embutida no discurso,
que é rotular o indivíduo como traidor. A traição veio antes. A traição
não ocorre quando ele diz: 'Acabou nossa sociedade criminosa e agora eu
vou colaborar com os caras'. A traição foi quando o criminoso violou o
vínculo jurídico de lealdade que ele deve ter com o Estado ou o vínculo
ético que ele deve ter com a sociedade como cidadão. Viver em sociedade
implica um compromisso ético de solidariedade de respeitar as regras do
jogo. A traição é quando o criminoso se volta para seu interesse
específico egoístico e começa a matar, roubar, corromper ou ser
corrompido, estuprar, fazer o que você tem vontade de fazer,
independentemente do interesse alheio. Repare que o nome da colaboração
premiada em italiano é "pentito", que significa arrependido. O conteúdo
ético da delação não é a traição, é o do arrependimento, exatamente o
contrário do discurso de advogados brasileiros famosos mais tradicionais
e que não acompanharam a evolução da normatividade internacional. O ex-gerente da Petrobras Pedro Barusco, um dos delatores da
Lava Jato, depôs contra autoridades e hoje está livre. Até foi
fotografado na praia. As delações não levam a uma sensação de
impunidade? É uma crítica razoável. O instituto da delação
premiada só se constrói com a prática. Os tribunais haverão de
estabelecer parâmetros. O primeiro acordo escrito e homologado na
Justiça tem quase 12 anos e foi firmado com Alberto Youssef no caso
Banestado. Podemos ter acordos de imunidade em que o indivíduo não perde
um dia sequer de liberdade. O problema é acharmos um equilíbrio para
que não haja injustiça. Mas qual a opção que o Estado tem senão o de
recorrer a esse tipo de prova testemunhal? Não é uma testemunha
tradicional, mas é uma testemunha. Dizem que o delator pode mentir, mas
qual a pessoa que não pode mentir? Youssef foi o grande delator da Lava Jato e voltou a cometer
crimes. Qual a credibilidade dos depoimentos de um criminoso conhecido e
que o Ministério Público já sabia que tinha violado a primeira delação?
Quantas pessoas no Brasil não fizeram nenhum acordo, foram condenadas,
cumpriram pena e voltaram a cometer crimes? Não é a delação premiada que
é o problema, e sim a reincidência, que é algo que diz respeito ao
livre arbítrio do indivíduo, que escolhe se quer continuar cometendo
crime, tendo sido condenado ou não. A questão é a dependência do Estado do mesmo personagem.
O que devemos nos perguntar é: aonde nos levou a colaboração premiada
do Alberto Youssef? Basta ver que um dos citados na Lava Jato devolveu
100 milhões de dólares [Pedro Barusco devolveu 97 milhões de dólares
depois de ter feito delação na Lava Jato]. A lógica da colaboração
premiada é trocar um suspeito por mil em uma progressão que temos como
estimar que vale a pena. No caso do Hildebrando Pascoal, por exemplo,
tínhamos um homicida que não pegou a pena que deveria pegar. Obedeceu-se
a lei, reduziu-se a pena. Se ele estivesse cometido esse crime nos
Estados Unidos, ele não teria pleiteando ir para a casa depois de
cumprir 16 anos. Ele estaria em uma cadeira elétrica ou condenado a uma
injeção letal. Voltando à delação, compensa porque a perspectiva que o
investigador faz é de ampliar o cabedal probatório, ampliar o número de
réus, proteger a sociedade, desmontar um esquema de corrupção. Advogados da Lava Jato dizem que a delação premiada virou rotina no processo.
Não existe limite legal. Posso ter quantos réus forem identificados na
prova. As delações atendem ao princípio da bilateralidade: só há acordo
se a defesa topa e um juiz homologa. A delação é um compromisso
universal que tem mais de dez anos. A Convenção de Palermo, que entrou
em vigor no Brasil em 2004, recomenda o uso da delação premiada. A
Convenção de Mérida, de 2003 e que entrou em vigor no Brasil em 2006,
recomenda o uso da colaboração premiada. Há uma força de fora para
dentro e a consciência social de que é inevitável que dependamos de
pessoas que colaborem com a persecução criminal. A não ser quando tem
uma escuta em andamento, qual informação podemos ter de um grande
esquema de corrupção como este da Lava Jato senão de quem estava dentro?
Podemos comparar com o caso do Hildebrando Pascoal. Uma das principais
testemunhas era um dos membros do grupo de extermínio. Quem mais sabia?
Quem sabia morreu. Na chacina de Unaí houve colaboradores. Alguém se
recorda disso? Aí entra aquela lógica de quem é atingido pelas delações.
Dizem: 'Agora é conosco e precisamos nos proteger'. Se é um pé de
chinelo, o discurso é um, se é um criminoso de colarinho branco, outro.
Isso vem da lógica da sociologia do crime. O sociólogo Edwin Sutherland
disse uma vez que é muito mais fácil perdoarmos e justificarmos a
criminalidade econômica, porque é algo que nós poderíamos cometer, do
que uma barbárie, um homicídio ou estupro. Qual é o efeito de investigações do MP para a governabilidade e para a saúde financeira das empresas suspeitas?
Sobre governabilidade eu não posso falar, mas sobre a saúde financeira
de empresas, digo que qualquer investigação tem um impacto para além do
direito. Tem impacto na vida das famílias dos presos, tem impacto na
sociedade, assim como a inação da Justiça também tem. Qualquer grande
investigação tem impacto sobre uma série de elementos da sociedade e da
economia. O Ministério Público americano tem ferramentas correlatas ao
que chamamos de acordo de colaboração premiada: o NPA (non-prosecution
agreement) e DPA (deferred prosecution agreement). Essas duas
ferramentas são, em geral, usadas para empresas. Não são acordos de
leniência, mas acordos penais também. No Brasil existe como fazer um
arranjo jurídico e pegar um pouco da leniência, da Lei Anticorrupção e
da lei do sistema brasileiro de defesa da concorrência e colaboração e
se cria um 'frankensteinzinho' jurídico. Mas em países como os Estados
Unidos temos persecução penal contra a pessoa jurídica para crimes
econômicos, de colarinho branco e lavagem de dinheiro, enquanto no
Brasil isso só vale para crime ambiental. Lá se pode preservar a
empresa, colocá-la em stand-by e determinar que em tal prazo ela se
ajuste, faça compliance, contrate auditoria, mude a diretoria e faça uma
restruturação total. É como se fosse uma recuperação judicial acertada
em uma perspectiva criminal. Enquanto isso, os acordos de leniência seriam o caminho natural para empresas investigadas na Lava Jato?
Não quero particularizar na Lava Jato, mas, em caso de provas
impactantes, acachapantes, é melhor um acordo do que uma briga judicial
porque preserva empregos e o mercado. Leniência é fundamental, mas é
preciso que a legislação de leniência tenha também maior clareza quanto à
participação do Ministério Público. Hoje qual é a segurança jurídica
que uma empresa tem de fazer acordo com o Executivo e o Cade ou o
Ministério Público lhe quebrarem a outra perna? Qual a segurança que se
tem de fazer um acordo com os Executivos de estados e municípios sem
combinar com o Ministério Público Federal ou com o Ministério Público
dos estados? É preciso que haja uma regra para que todas essas entidades
sentem à mesa e se comprometam com o resultado. Esse erro vem sendo
repetido na lei brasileira desde a primeira lei antitruste, de 1994, que
previa o acordo de leniência para práticas anticoncorrenciais, mas não
vinculava o Ministério Público. O erro voltou a ser repetido 20 anos
depois em 2013 na Lei Anticorrupção.
Na Lava Jato, o Brasil conseguiu trazer 485 milhões de reais
que estavam depositados no exterior. Mas em outros escândalos, a
impressão é a de que nunca mais veremos o dinheiro desviado. O
que impede que o dinheiro volte é o sistema recursal. Como nosso sistema
recursal é baseado em uma premissa equivocada de que temos que esperar o
último recurso do último tribunal. Ainda temos casos aqui do Banestado
que eu denunciei em Curitiba perante Moro, casos de 11 anos atrás de
bloqueio de ativos e que o dinheiro ainda não voltou. O dinheiro foi
bloqueado, o réu já foi condenado em primeiro e em segundo grau e o
dinheiro não volta porque não transitou em julgado ainda. Se prescrever,
o dinheiro não vai voltar.
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