A maioria dos mensaleiros, bem como dezenas de personagens que ficaram de fora do julgamento no Supremo, tem outras contas para acertar com a Justiça: pelo menos 46 ações penais e civis
Daniel Jelin
Veja.com
O processo do mensalão no Supremo: mais de 50 mil páginas não encerram o escândalo
(Nelson Jr./SCO/STF)
A condenação de 25 réus do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal em 2012 foi um acerto de contas histórico, mas não encerrou o caso. Como já lembrou o procurador-geral Roberto Gurgel, o escândalo é “muito mais amplo” que a ação penal 470. O maior julgamento da história do STF desde a redemocratização cuidou do eixo central das falcatruas (desvio de dinheiro público para a compra de apoio político) e de seus personagens principais (incluindo o chefe da quadrilha, o ex-ministro José Dirceu).
Mas a maioria dos mensaleiros, bem como dezenas de personagens que ficaram de fora do julgamento no Supremo, tem outras contas para acertar com a Justiça: pelo menos 46 ações penais e civis em Minas Gerais, Distrito Federal, São Paulo, Rio e Janeiro e Espírito Santo, envolvendo 154 pessoas, além de empresas.
Tantos processos são o resultado de um esforço investigativo monumental, que remonta à revelação, por VEJA, das traficâncias de um apaniguado do PTB nos Correios, flagrado em vídeo embolsando 3 mil reais a título de propina.
Até agora apenas sete ações foram julgadas – tudo ainda na primeira instância. Outras sete estão prontas para ir a julgamento.
Os processos se ligam a tramas diversas. A primeira delas se passou em Minas Gerais, em 1998, e consistiu, segundo a denúncia do Ministério Público, no desvio de recursos de estatais, por meio das empresas de Marcos Valério, para a campanha pela reeleição do então governador tucano Eduardo Azeredo.
Com a derrota de Azeredo, o publicitário passou a mirar o governo federal e se aproximou do PT: “Do financiamento de campanha (...), Valério e seu grupo evoluíram, em conluio com José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoíno, Sílvio Pereira e outros, para a compra de apoio político de parlamentares”, resumiu o MP.
A farra vigorou até a delação de um de seus beneficiários, o então deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), acuado pela revelação de um esquema complementar de corrupção no feudo petebista dos Correios, cujo loteamento também serviu de moeda de troca para garantir apoio ao governo federal.
Nasce um escândalo – Maurício Marinho, diretor de departamento dos Correios, recebe propina na sede da estatal, em 2005
A devassa nos Correios - A roubalheira nas estatais começou a ser investigada em junho de 2005 e se desdobrou em diversas ações nas esferas penal e civil. A principal linha de investigação resultou em pelo menos três ações penais. São réus: o ex-deputado Roberto Jefferson, o ex-diretor de administração dos Correios Antônio Osório Batista, o ex-chefe do Departamento de Compras e Contratações da estatal Mauricio Marinho (que estrela a videoaula de corrupção) e outros apadrinhados do PTB, funcionários dos Correios, lobistas e empresários espertalhões.
O esquema descrito pelo Ministério Público é bastante simples: uma quadrilha, comandada por Jefferson, tomou conta de diretorias-chave dos Correios com o objetivo de levantar recursos para si próprios e para o partido, em particular no ano eleitoral de 2004.
“O grau de organização realmente impressiona”, diz o MP, na denúncia oferecida em 2008. Segundo os procuradores, um dos documentos que baseiam a acusação, recolhido do computador de Marinho, aponta não apenas a taxa da propina como também os impostos que deveriam ser excluídos da base de cálculo e o valor estimado dos desvios.
Até agora, ninguém foi julgado.
Nesta instância, Jefferson responde por formação de quadrilha (pena de 1 a 3 anos). Como já passaram mais de quatro anos desde o recebimento da denúncia, o caso já terá prescrito em caso de condenação a penas até dois anos.
O valerioduto mineiro – Em dezembro de 2005, o inquérito do mensalão foi desmembrado e deu origem a uma linha de investigação inteiramente devotada à perna mineira do escândalo.
É o chamado mensalão mineiro ou tucano – embora, a rigor, não tenha a forma de mensalão, nem se limite a políticos do PSDB. Para o Ministério Público, tratou-se de um laboratório do valerioduto a serviço da campanha pela reeleição de Eduardo Azeredo (ex-presidente do PSDB e atual deputado federal) ao governo de Minas Gerais em 1998, tendo Clésio Andrade (então no PFL, hoje senador pelo PMDB) como vice.
Outros réus do caso: o ex-vice de Azeredo e ex-ministro de Lula Walfrido dos Mares Guia (então no PTB, hoje no PSB), o ex-secretário de Azeredo e tesoureiro de campanha Cláudio Mourão, assessores, diretores de estatais, sócios de Valério e, em processo à parte, os executivos do Rural.
O que o valerioduto mineiro tem em comum com o mensalão é evidente: o desvio de recursos públicos por meio das empresas de Marcos Valério, com auxílio providencial do Banco Rural, conforme a denúncia. Segundo o MP, a sangria dos cofres de Minas (estatais Copasa, Comig e Bemge) alcançou 3,5 milhões de reais (o equivalente a 1/3 da soma que Duda Mendonça receberia do valerioduto no exterior, como pagamento pela campanha de Lula).
Mas à diferença das traficâncias no Congresso, o caso mineiro não envolveu compra de voto. De acordo com o MP, os desvios tinham por destino o caixa da campanha tucana – que, afinal, fracassou, derrotada por Itamar Franco (PMDB).
O valerioduto mineiro é, portanto, anterior ao mensalão, mas só foi descoberto depois, com a súbita atenção que as empresas de Marcos Valério passaram a atrair.
A primeira denúncia foi oferecida em novembro de 2007 e desde então o processo tem sofrido com o vaivém da primeira instância ao Supremo e deste de volta àquela.
É que Azeredo, antes como senador, depois como deputado, goza de prerrogativa de foro. Em 2009, atendendo a pedido de Valério e outros réus, o STF desmembrou o caso, manteve o processo de Azeredo e remeteu os demais réus à Justiça de Minas.
A interpretação do relator Joaquim Barbosa: não havendo acusação de formação de quadrilha, o processo correria mais rápido dessa forma. Em 2011, Clésio Andrade assumiu uma vaga no Senado e passou a gozar da mesma prerrogativa. Novamente a pedido de Valério, a Justiça mineira devolveu os autos ao STF, que novamente os desmembrou e encaminhou os demais réus à primeira instância.
Assim, Azeredo e Clésio respondem separadamente a ações no Supremo, e os demais aguardam sentença da Justiça de Minas. Até agora ninguém foi julgado. No STF, desde que Joaquim Barbosa assumiu a presidência da Corte, o caso ficou sem relator.
O risco de prescrição é considerável, uma vez que os fatos narrados pelo MP são de 1998. Um dos réus em Minas, Mares Guia, já conta com isso. É que o ex-ministro foi acusado de lavagem e peculato, cuja pena máxima (10 e 12 anos, respectivamente) prescreve em 16 anos.
Como completou 70 anos em 2012, cabe a redução do prazo à metade, 8 anos, tempo menor que o decorrido entre a desditosa campanha tucana e a abertura do processo em 2010.
Apenas uma das ações relacionadas ao caso mineiro chegou a julgamento. Em setembro de 2012, a Justiça absolveu funcionários do Rural e extinguiu a ação contra a banqueira Kátia Rabello e o ex-vice-presidente do banco José Roberto Salgado por considerar que a acusação de gestão fraudulenta já era objeto da ação que tramitou no Supremo, onde ambos foram condenados.
O Ministério Público recorreu, alegando que as investigações foram desmembradas justamente por tratar de fatos distintos.
O caso BMG – Com o Banco Rural, o BMG também serviu como esteio financeiro para as peripécias de Valério e cia, segundo o Ministério Público.
“Os dirigentes do Banco BMG injetaram recursos milionários na empreitada delituosa, mediante empréstimos simulados”, diz a denúncia do mensalão.
“Entretanto (...), não há elementos para apontar uma atuação estável e permanente com os demais membros da organização criminosa, razão pela qual não estão sendo denunciados pelo crime de quadrilha”.
Por isso, ao contrário da cúpula do Rural, a do BMG escapou do processo principal. Mas nove meses após oferecer a denúncia do mensalão ao Supremo, o MP formalizou a acusação contra o BMG, aceita em abril de 2007, tendo como relator o mesmo ministro, Joaquim Barbosa.
O caso BMG também sofreu com vaivém entre instâncias. Em 2011, o processo foi remetido para Minas Gerais, uma vez que o único réu que tinha foro privilegiado, José Genoino, havia perdido a disputa por uma vaga na Câmara. Em outubro de 2012, saiu a sentença em Minas Gerais.
À exceção da mulher de Valério, todos os demais réus foram condenados, uns por falsidade ideológica (Genoino, Delúbio Soares, Valério e sócios), outros por gestão fraudulenta (os diretores do BMG, incluindo seu dono, Ricardo Guimarães).
Todos puderam recorrer em liberdade. Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, vai defender os dirigentes do banco na segunda instância.
Diz a sentença da Justiça mineira que o BMG praticamente “pagou para emprestar” ao PT e às empresas de Valério. É a tese do MP.
Segundo a promotoria, o banco teve um interesse bastante concreto na transação com o lulopetismo: obter “lucros bilionários na operacionalização de empréstimos consignados de servidores públicos, pensionistas e aposentados do INSS”.
Estas vantagens, segundo o Ministério Público, também foram objeto de uma ação na esfera civil, em 2011, contra o presidente Luiz Inácio Lula de Silva e seu ex-ministro da Previdência, Amir Lando. Segundo o MP, os dois valeram-se da máquina pública para fazer promoção pessoal e favorecer o banco mineiro.
A denúncia refere-se às milhares de cartas enviadas pelo governo para propagandear a novidade do crédito consignado quando apenas o BMG estava habilitado a oferecê-lo. A promotoria exigia a devolução de 10 milhões de reais ao erário, mas a Justiça Federal do DF concluiu ser incabível tal pedido por meio de ação de improbidade pública e, sem o exame de mérito, devolveu a peça ao MP, que poderá reformular a acusação.
Outras tramas do mensalão – A denúncia original do mensalão é um recorte do escândalo. “Foi o que foi possível provar, com elementos razoáveis”, disse Gurgel ao jornal Folha de S.Paulo. “O grande desafio era provar a responsabilidade do chamado núcleo político.” O prosseguimento das investigações deu origem a pelo menos 31 processos.
Na mira: Valério, sócios e os executivos do Rural, por crimes contra o sistema financeiro e a ordem tributária; corretoras e doleiros acusados de servir ao esquema de lavagem em São Paulo e Espírito Santo; intermediários dos pagamentos no exterior ao publicitário Duda Mendonça; os mesmos mensaleiros julgados no STF, em ações civis (entre elas, há uma para cada partido: PT, PTB, PP, o antigo PL e o PMDB); Delúbio Soares, por lavagem de dinheiro (no Supremo ele foi condenado por corrupção e formação de quadrilha); o ex-procurador da Fazenda Glênio Sabbad Guedes, no Rio de Janeiro, acusado de receber propina de Valério para interceder em favor dos bancos ligados ao esquema; entre outros casos.
A grande maioria das ações tramita na primeira instância. Uns poucos casos chegaram à sentença. O primeiro deles, em 2010, deu na condenação de Rogério Tolentino a sete anos e quatro meses de prisão por lavagem de dinheiro.
Em agosto de 2011, Valério e o sócio Cristiano Paz foram condenados a seis e cinco anos de reclusão por prestarem informações falsas ao Banco Central. Em fevereiro de 2012, Valério, Paz e Ramon Hollerbach foram condenados a nove anos de prisão por sonegação e falsificação de documentos. Em outubro de 2012, dois empresários foram sentenciados a mais de dez anos de prisão por evasão e lavagem.
De acordo com a sentença, atuaram na intermediação de remessas ao exterior em benefício de Duda Mendonça (que no Supremo foi absolvido e neste caso não é réu). Em janeiro de 2013, Valério sofreu mais uma condenação penal, desta vez por sonegação. Estas cinco sentenças saíram em Minas, e todos os condenados puderam recorrer em liberdade.
Não está claro que efeitos o julgamento no Supremo terá sobre os demais processos. Um deles é previsível: réus que perderem a primariedade enfrentarão penas mais duras, por maus antecedentes, e perderão benefícios da progressão de regime, do fechado ao semifechado ou aberto.
Outro: as teses aceitas pelo Supremo para condenar os mensaleiros, como a validade dos indícios apurados na CPI, e mesmo o rigor com que trataram o assalto aos fundamentos da democracia poderão influenciar os demais magistrados.
Ao procurar o Ministério Público com novo testemunho sobre a participação de Lula no esquema, em setembro de 2012, Valério deveria saber que um eventual acordo não aliviaria a pena aplicada pelo STF (mais de 40 anos de prisão e multa milionária), mas poderia favorecê-lo nos processos em andamento. Há pelo menos onze ações penais contra Valério em Minas Gerais e uma no Rio, além de processos na esfera civil no Distrito Federal.
A investigação continua – Passados mais de sete anos do escândalo, algumas linhas de investigação continuam abertas e vários dos 118 indiciamentos pedidos pela CPI dos Correios em seu relatório final, de abril de 2006, não prosperaram.
Em 2011, a Polícia Federal concluiu o relatório de um inquérito sigiloso desdobrado da investigação original para apurar outras fontes de financiamento do mensalão, bem como outros beneficiários. Cabe agora ao Ministério Público oferecer – ou não – a denúncia.
Alguns dos alvos: o pagamento de 98 500 reais à empresa de Freud Godoy, o faz-tudo de Lula; traficâncias envolvendo outras estatais; as relações de Valério com o Grupo Opportunity, de Daniel Dantas; outros lobbies de Valério; e pagamentos suspeitos feitos a dezenas de políticos, assessores, servidores e empresas.
Alguns dos nomes citados: o ministro de Dilma Fernando Pimentel (Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior), o ex-ministro de FHC Pimenta da Veiga (Comunicações), o senador Romero Jucá (PMDB-RR), os deputados federais Vicentinho (PT-SP), Benedita da Silva (PT-RJ), José Mentor (PT-SP), Jaqueline Roriz (PMN-DF), João Magalhães (PMDB-MG) e Lincoln Portela (PR-MG), entre outros.
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