A posição de Gilmar Mendes contraria o histórico de decisões dos tribunais
O senhor entende que pode haver um grande número de criminosos soltos por conta dessa decisão?
Essa é uma questão de segurança pública que transcende a Lava Jato. O
Supremo soltará, além de corruptos, também homicidas, traficantes e
estupradores. Segundo a imprensa tem noticiado, até 190 mil presos
poderão ser soltos caso o STF exija um julgamento de terceira ou quarta
instância para a prisão. Na Lava Jato, 38 pessoas serão afetadas – o que
representa mais de 20% dos condenados. Agora, o que preocupa ainda mais
são os efeitos futuros da decisão. A impunidade, especialmente dos
poderosos, se intensificará.
O que o senhor achou da decisão do STF que mandou suspender
investigações com base em dados do Coaf, como foi o caso do senador
Flávio Bolsonaro?
A decisão impediu que a Receita e o Coaf informem detalhadamente
crimes ao MP sem prévia autorização judicial e suspendeu investigações
que contêm tais comunicações. A decisão que beneficiou o senador Flávio
Bolsonaro contraria a lei. A Lei Complementar 105 prevê expressamente
que essa comunicação não caracteriza violação de sigilo. Aliás, é uma
obrigação de todo servidor público informar crimes de que tenha
conhecimento. Milhares de investigações estão sendo impedidas ou correm
risco de anulação. Só a Lava Jato recebeu mais de 500 comunicações de
crimes de corrupção e lavagem de dinheiro feitas pela Receita. O número
de relatórios do Coaf sobre lavagem de dinheiro caiu mais de 80%. De uma
média de 741 mensais no primeiro semestre, caiu para 136 no mês
seguinte à decisão.
O STF deve julgar em breve também o pedido do ex-presidente Lula
para a anulação da sua condenação no caso do tríplex, alegando a
suspeição do ex-juiz Sergio Moro. O que o senhor acha disso?
Hoje, a condenação não é mais do ex-juiz Sergio Moro, mas de três
desembargadores e quatro ministros do STJ, os quais, de forma unânime,
confirmaram a condenação. Cinco desses sete julgadores foram nomeados
pelo próprio ex-presidente Lula ou por sua sucessora, a ex-presidente
Dilma. Ao longo do processo, o juiz seguiu o mesmo padrão dos demais
casos e isso o levou a negar vários pedidos do MP e a deferir diversos
da defesa, o que corrobora sua imparcialidade. O julgamento está
solidamente embasado nos fatos, nas provas e na lei. Além disso, dados
que levantamos mostram que a duração do processo e as penas aplicadas ao
ex-presidente estão dentro da média dos demais casos da operação. O
ex-presidente recebeu o mesmo tratamento dos demais réus da Lava Jato.
O senhor pediu para que o ex-presidente Lula cumpra o resto da
pena do tríplex em prisão domiciliar, mas ele não quer ir para casa com
tornozeleira. Ele pode se recusar a deixar a cadeia?
O pedido foi feito pelos procuradores da força-tarefa da Lava Jato,
que integro, para que a lei seja cumprida. O estado não pode exercer seu
poder para além do que a lei permite, o que caracterizaria excesso de
poder. Ninguém pode ficar preso em um regime mais grave do que a lei
determina. O ex-presidente deve cumprir pena como qualquer preso, nem
menos, nem mais.
O ex-presidente afirma que o senhor e o ministro Moro o condenaram por razões políticas.
O ex-presidente é um dentre 150 condenados e 466 acusados na Lava
Jato. Foram atingidas mais de uma dezena de siglas partidárias.
Políticos de diferentes partidos foram presos. O fato é que ele responde
a outros sete processos, em diferentes Estados, onde atuam agentes
públicos independentes. Ou seja, também não se trata de um procurador e
de um juiz. Dizer que dezenas de procuradores e julgadores de diferentes
lugares e instâncias formaram um conluio para condenar inocentes é
produzir uma teoria da conspiração sem amparo na realidade.
A medida do STF (que beneficiou o senador Flávio Bolsonaro) contraria a lei
O senhor acha que está havendo retrocesso em matéria de combate à corrupção?
Com certeza, todo mundo está vendo isso. Pela primeira vez na
história, a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico) enviará ao Brasil uma missão de alto nível que soa como uma
advertência em razão dos retrocessos no combate à corrupção. Analisarão
decisões de tribunais e leis como a de abuso de autoridade.
A Lava Jato acabou?
A Lava Jato é um grande trabalho institucional em que estão
envolvidos centenas de servidores públicos. E esse trabalho continua em
pleno vapor. Em 2019, já oferecemos mais denúncias do que em quatro dos
cinco anos da operação e o ano ainda não acabou. Neste ano, foram feitas
nove fases da Lava Jato e os acordos realizados com criminosos já
ultrapassaram R$ 2 bilhões de reais. Ainda há muito por fazer no ano que
vem, se as leis e as decisões superiores permitirem.
O senhor vai mesmo deixar a coordenação da Força Tarefa da Lava
Jato para assumir o cargo de Procurador-Geral da República do Paraná?
Estou há 17 anos no MPF e cinco anos na Lava Jato, uma operação
bastante intensa, o que naturalmente gera um cansaço. Tenho ainda um
histórico de atuação e tempo de serviços prestados que permitiriam me
candidatar à promoção. Ainda tenho tempo para refletir.
O presidente Bolsonaro apoia ou está contra a Lava Jato?
O Executivo tem enviado mensagens ambivalentes no tema anticorrupção.
Por um lado, veta regras da lei de abuso de autoridade que amarrariam
investigações legítimas contra poderosos e isso favorece a atuação
contra a corrupção. Por outro, faz interferências que prejudicam a
autonomia dos órgãos de investigação. Caso se crie um ambiente em que um
policial ou auditor tenha medo de ser punido quando mexer com grandes
interesses, isso prejudicará o interesse público.
Nos últimos cinco meses, o senhor foi vitima de ataque de hackers
que roubaram mensagens do seu Telegram e as repassaram ao site The
Intercept. Qual lição o senhor tirou do caso?
Que valeu a pena tudo que investimos para dar transparência ao nosso
trabalho nos últimos cinco anos. O embasamento de cada investigação nos
fatos, nas provas e na lei, a publicidade dos processos e o amplo
escrutínio da Lava Jato feito pela sociedade e pela Justiça permitiram
que a população desenvolvesse uma confiança muito grande no trabalho, o
qual resistiu aos ataques.
Apesar dos diálogos envolvendo o senhor e o ex-juiz Sergio Moro
não terem revelado nenhuma ação criminosa, o senhor reconhece como
verdadeiras as conversas?
Está claro que mensagens foram roubadas por um hacker com largo
histórico criminal. Além disso, é impossível recordar de milhares de
conversas em cinco anos e não temos mais as mensagens originais para
comparação. Muito antes de qualquer divulgação, recebemos orientação
para encerrar a conta no Telegram, o que apagou as mensagens, a fim de
proteger investigações sigilosas. Até lembramos de temas tratados, mas
as acusações de ilegalidades não procedem. Vemos claramente a
descontextualização ou deturpação das mensagens, que foram colocadas sob
a visão dos advogados dos réus. Se fôssemos seguir o que os advogados
dos réus defendem, pediríamos a anulação dos processos, a absolvição de
todos os réus e a devolução do dinheiro recuperado.
O senhor acha que houve uma inversão total de valores, em que os criminosos viraram vítimas e os procuradores culpados?
Há uma campanha de vilanização do trabalho legítimo e legal das
instituições responsáveis pela persecução penal. No passado, já vimos
isso ocorrer em operações como a Castelo de Areia e a Satiagraha, em que
tivemos autoridades atacadas com o intuito de desmerecer todo o
trabalho investigativo e possibilitar a anulação das operações, apesar
do amplo acervo de provas materiais dos crimes. Estamos vivendo o mesmo
processo. Agora, atacam o Ministério Público e a Justiça Federal.
Cria-se uma acusação genérica de supostos excessos, quando o que cabe é
perguntar: qual decisão ou condenação foi equivocada? A onda difamatória
é aproveitada por quem tem por intuito anular as condenações, ignorando
as provas.
O ministro Gilmar Mendes defende a utilização dos diálogos
roubados do seu Telegram nos processos contra o senhor e o ministro
Moro. O que o senhor acha disso?
A Constituição proíbe o uso de provas ilícitas.
Esse seria mais um golpe contra a Lava Jato?
Essa posição do ministro Gilmar Mendes contraria todo o histórico de decisões dos tribunais.
Os movimentos fazem parte de uma articulação para acabar com a Lava Jato?
Desde que a Lava Jato atingiu poderosos, sempre houve uma articulação para acabar com ela.
Acusam o senhor de ganhar dinheiro com as palestras.
A Constituição autoriza juízes e membros do Ministério Público a
desempenhar uma única atividade, além de sua função pública, que é a
docência. Tanto o Conselho Nacional de Justiça, como o do MP, entendem
que palestras se enquadram no conceito de atividade docente. Em 2017, o
plenário do Conselho Nacional do MP avaliou minhas palestras e decidiu
de modo unânime que são legais e legítimas. Todo o valor é declarado em
imposto de renda. Por uma decisão pessoal, grande parte do que recebo
vai para a filantropia. A maioria das minhas palestras, falando sobre o
combate à corrupção, sempre foram gratuitas.
Qual é sua maior preocupação no combate à corrupção hoje?
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