É dura a vida num país “polarizado”.Viva a democracia que produz resultados saudáveis, mesmo que não gostemos deles
Sobrou até para ele: companheiras de Partido Trabalhista pedem a cabeça de Corbyn
Quando jornalistas pouco afeitos a fugir dos clichês não gostam do resultado de eleições ou de grandes mudanças políticas, usam a palavra “polarização”. A Economist, por exemplo, detestou a votação pela saída da Grã-Bretanha da União Europeia e, entre as previsões catastróficas, tacou lá o tal “país polarizado”.
Primeiro-ministro cair porque prometeu uma coisa e entregou outra, como aconteceu com David Cameron, é um sinal do saudável sistema de alternância no poder e dos recursos do parlamentarismo para amortecer crises.
O mesmo pode vir a acontecer com o líder da oposição, Jeremy Corbyn. Por causa do resultado “desastroso”, sem falar na má vontade com que dirigiu a campanha pelo “sim” do lado oposicionista, duas parlamentares do Partido Trabalhista pediram a cabeça dele. A proposta será votada na próxima segunda-feira e tem baixa probabilidade de aprovação, mas já foi dada como mais um sinal da terrível “polarização” que acomete as ilhas britânicas.
“Precisamos traçar um caminho entre a ideologia do mercado de um lado e a fantasia de outro”, disse uma das autoras do pedido, Helen Goodman, ainda inconformada com o fato de que a classe trabalhadora votou contra o partido que teoricamente a representa.
A linguagem de manual esquerdista é uma cortina de fumaça para um fato da vida: se houver eleições gerais, em consequência do voto pelo Brexit, Corbyn não é um candidato viável.
Só para lembrar: na origem da união europeia, ainda sem maiúsculas, estava a ideia de um mercado comum sem tarifas. Sindicatos e partidos de esquerda não gostavam do conceito de livre comércio por acharem que, primeiro, reforçavam o capitalismo; segundo, afetavam o poder sindical.
Nesse mundo, hoje, a esquerda virou direita; a direita virou mais direita ainda, com componentes anti-establishment como a rebelião contra as elites europeias. Mas Corbyn e seus companheiros de trotsquismo mantiveram velhos conceitos.
Corbyn fez campanha pelo “sim” quase forçado, mas fez. Se não fosse pelo bizarro assassinato da parlamentar trabalhista Helen Joanne Cox, conhecida como Jo, morta por um doente mental obsidiado por ideias ultra-nacionalistas, ele não teria aparecido em momento algum ao lado de David Cameron.
Numa homenagem póstuma à parlamentar, Dave e Jez, como o líder trabalhista é chamado pelos amigos (pelos inimigos, é Jezbollah) pareciam um ex-casal que se cruza no Natal em família depois de um divórcio com vítimas.
O lado vencedor também teve seus próprios frenemies, os amigos inimigos. Nigel Farage, criador de um partido inteiramente dedicado a combater a União Europeia, o UKIP, em nenhum momento dividiu o palanque com conservadores como Boris Johnson
A esquerda do partido comemorou a eleição de Corbyn como líder trabalhista, uma espécie de evento cisne negro – ou pelo menos é essa ideia que os institutos de pesquisa tentam passar quando erram feio. Desde que assumiu, ele cometeu erros sucessivos e, pior ainda, evitáveis. Fazer bobagens desnecessárias é a marca irrefutável da incompetência.
Até agora, a maior manifestação de ”polarização” pós-plebiscito aconteceu em frente a casa de Boris Johnson. Um pequeno grupo de pessoas a pé e de bicicleta hostilizou o político mais eficaz da campanha do “não” quando ele saía para seu primeiro discurso depois da vitória. Algumas pessoas acham que ser xingado por ciclistas, ou cicloativistas, também é uma vitória e tanto. Detalhe importante: Boris também anda de bicicleta e, quando foi prefeito de Londres, fez um projeto enorme de uma rede de ciclovias. De verdade, não uma tintinha pintada no chão.
Boris fez bonito no discurso. Elogiou Cameron como politico “extraordinário”, prometeu que “continuaremos a interagir com os povos de outros países de maneira aberta e amistosa” e saudou a Europa unida como “uma ideia nobre a seu tempo, mas que não é mais certa para este país”.
Cameron foi digno, elegante e usou todas as palavras certas no discurso de derrota. No finzinho, quando disse “amo este país e vou continuar fazendo tudo para ajudar”, quase deu para ver as lágrimas se formando no rosto da mulher dele, Samantha, que usava um chamativo vestido com losangos e besouros, uma estampa da moda, da marca Preen.
Corbin balbuciou umas bobagens. Na hipótese remota de que perca a liderança trabalhista, continuará com sua vidinha de sempre – sobrado geminado, bicicleta, mulher mexicana, roupas usadas e ideias mais velhas ainda.
Ninguém foi preso por corrupção e os pubs começaram a encher para a happy hour de sexta-feira sem sinais de guerra civil. É dura a vida num país “polarizado”.24 de junho de 2016
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