Um caso exemplar de como a política manda na estatal
DIEGO ESCOSTEGUY E MARCELO ROCHA
COM LEANDRO LOYOLA
Revista Época
Há cerca de dois anos, a presidente da Petrobras, Maria das Graças Foster, convocou os principais executivos da estatal para uma reunião. Graça Foster, como é conhecida, assumira o cargo havia poucos meses, mas já queria exigir resultados. Como ocorrera com alguns dos subordinados de Dilma Rousseff, ela assimilara rapidamente o estilo da presidente: gritar primeiro e cobrar depois. O clima naquela reunião, como em tantas outras, era tenso. Internamente, a Petrobras já vivia tempos difíceis. Gastava demais para produzir – e vender – petróleo de menos. O motor da Petrobras engasgava porque ela rodava, desde o começo do governo Lula, com gasolina de má qualidade, batizada com política excessiva. Política na escolha de quem comandaria a empresa (subiu quem fosse mais amigo do PT e do PMDB) e na escolha por gastar muito em múltiplos e simultâneos contratos caríssimos (subiram as empresas amigas dos amigos do PT e do PMDB).Naquela reunião, Graça Foster cobrava resultados. Quem deveria ser cobrado já deixara a Petrobras. Não estavam na reunião sindicalistas do PT, como José Sérgio Gabrielli, a quem Graça Foster sucedera, e executivos suspeitos de corrupção, como Paulo Roberto Costa, sustentado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e por um consórcio entre PT, PMDB e PP. Dilma conseguira derrubar Paulo Roberto da Diretoria de Abastecimento logo após Graça Foster virar presidente da Petrobras, mas não conseguira evitar que o número dois de Paulo Roberto, José Carlos Cosenza, assumisse o posto do antigo chefe. Cosenza fora escolhido pelo PMDB do Senado.
Abaixo de Cosenza, mantinham-se apaniguados do PMDB. Nenhum era mais poderoso que outro José, de sobrenome Pereira, à frente da gerência responsável por compras e vendas milionárias (sem licitação) de produtos derivados de petróleo. Pereira era mantido no cargo por indicação pessoal do ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, do PMDB.
Pereira estava na reunião. E ouviu muito. “Se você pensa que se manterá no cargo só porque foi indicado pelo Lobão, está enganado”, disse Graça Foster, segundo relatos de quem estava lá. Pereira ficou furioso. “Se a senhora pensa que é presidente da Petrobras porque é a melhor engenheira da empresa, está enganada”, disse, segundo os mesmos relatos. “A senhora está presidente porque sua indicação política é melhor do que a minha.” Graça Foster respondeu com “impropérios”, nas palavras de quem assistiu à cena. Pereira levantou-se e deixou a sala.
Numa demonstração do peso que a política tem nas decisões tomadas – e nas que deixam de ser tomadas – na Petrobras, Graça Foster não conseguiu demitir Pereira. Ele permaneceu mais dois anos no cargo. Foi demitido apenas há três semanas, no dia em que a Polícia Federal entrou, com ordem judicial, na sede da Petrobras, em busca de provas do esquema de corrupção liderado por Paulo Roberto.
Segundo documentos obtidos pela PF na casa de Paulo Roberto, a que ÉPOCA teve acesso, como a agenda dele (leia abaixo), Cosenza continuava a se encontrar periodicamente com o ex-chefe. Despachavam sobre os assuntos discutidos na cúpula da estatal. Os documentos, como e-mails e planilhas, mostram que, mesmo fora da Petrobras, Paulo Roberto continuou seu esquema na Diretoria de Abastecimento.
Ajudava a fechar e a prorrogar contratos de quem pagava a ele por isso. Quem o ajudava a mover a caneta dentro da Petrobras? A PF investiga.
Na Petrobras, como em qualquer estatal, a caneta só se move por fortes razões – normalmente, por pressão ou ordem de quem indicou aquele que pode mover a caneta. Nos casos de corrupção descobertos nos últimos meses, pesam suspeitas graves contra seis empreiteiras e outras seis multinacionais, além de políticos do PT, do PMDB e do PP. A maioria das evidências está no inquérito aberto para investigar a “organização criminosa”, como define o Ministério Público, liderada por Paulo Roberto e pelo doleiro Alberto Youssef. Um contrato da Petrobras em especial (leia abaixo), investigado pela PF e pelo MPF em outra frente, assusta os políticos, ainda mais na iminência da criação de uma CPI no Congresso para apurar os desvios na Petrobras. O negócio, de US$ 826 milhões, foi fechado em outubro de 2010, durante o segundo turno das eleições presidenciais, entre a Petrobras, maior empresa do Brasil, e a Odebrecht, maior empreiteira do Brasil. Para quê? Serviços de segurança, meio ambiente e saúde em unidades da Petrobras no Brasil e no exterior – um conjunto de providências que, no mundo empresarial, leva a sigla SMS.
Em agosto do ano passado, o lobista João Augusto Henriques, responsável, no PMDB, por fazer a caneta da Diretoria Internacional da Petrobras se mexer, afirmou a ÉPOCA que montara essa operação.
Disse que, para que a caneta do PT de Gabrielli se mexesse e aprovasse o contrato, foi preciso acertar uma doação equivalente a US$ 8 milhões à campanha de Dilma Rousseff. “Odebrecht? Eu montei tudo”, disse João Augusto. “A Odebrecht tinha de ganhar. Foi até ideia minha. Pelo tamanho dela. Pelo padrão.” Ele afirmou que acertou a doação com o tesoureiro informal do PT, João Vaccari. Segundo João Augusto, tudo começou no segundo semestre de 2009. Funcionava no Senado a CPI da Petrobras. Era uma CPI fajuta, que quase nada investigou. Pelo acordo revelado por João Augusto e confirmado a ÉPOCA por mais dois envolvidos na operação, o PMDB ajudaria a enterrar a CPI, relatada pelo senador Romero Jucá.
Em troca, a direção da Petrobras, então comandada por Gabrielli, assinaria embaixo do projeto Odebrecht. Houve dificuldades, mas assim foi feito.
Em janeiro de 2012, pouco antes da intervenção branca de Dilma na Petrobras e da posse de Graça Foster, auditores encontraram irregularidades graves no contrato de US$ 826 milhões. ÉPOCA obteve acesso à auditoria. Era um trabalho preliminar, mas minucioso, que nunca veio a público. Nele, os auditores são contundentes nas ressalvas à operação. Alertam que o negócio com a Odebrecht fora ruim – e dizem que o contrato deveria ser rescindido (leia documentos e detalhes acima). “A estratégia de contratação para implantação da carteira (SMS) da ANI (Área de Negócios Internacional) se mostrou prejudicial aos interesses da Petrobras”, afirmaram os auditores. “Sob tais circunstâncias, o processo licitatório deveria ter sido interrompido”, afirmou Marise Feitoza, gerente de Auditorias Especiais.
Os auditores entenderam que a contratação fora equivocada, por causa do perfil das empresas convidadas e pelo prazo reduzido para apresentação de propostas. A Petrobras convidou formalmente outras empreiteiras: quatro no Brasil e quatro no exterior. Algumas não tinham nada a ver com esse tipo de serviço. Todas declinaram. Sobrou para a Odebrecht. A auditoria preliminar apontava numerosas irregularidades no contrato. Entre elas: a diretoria executiva da Petrobras determinara que os serviços relativos às refinarias de Pasadena, nos Estados Unidos, Bahía Blanca, na Argentina, e Okinawa, no Japão, deveriam ser submetidos a autorização específica antes de ser feitos. No caso de Pasadena, isso significou um aditivo de US$ 20,3 milhões ao contrato. Os auditores não encontraram evidência de que isso tenha sido respeitado. A fiscalização concluiu que a Odebrecht usou uma artimanha comum: atribuir preços elevados a serviços que fatalmente serão feitos em maior quantidade na execução do contrato. É uma prática conhecida como “jogo de planilha”. Aumenta o lucro da empresa contratada. E dá prejuízo a quem contrata.
O relatório causou pânico na cúpula da Petrobras e fúria na Odebrecht. De acordo com técnicos da estatal, Graça Foster e sua equipe pretendiam seguir a orientação da auditoria e anular o contrato. Ao saber disso, João Augusto e o PMDB agiram. Segundo o relato de João Augusto, o presidente da Odebrecht, Marcelo Odebrecht, procurou Graça Foster para impedir a anulação do contrato. Ele mencionou, segundo João Augusto e outro lobista envolvido no negócio, as “contribuições políticas” decorrentes do contrato. Após a pressão da Odebrecht e dos lobistas envolvidos, fez-se uma nova versão da auditoria. Ela não falava em anular o contrato e usava linguagem mais leve. Era uma solução intermediária. Em janeiro de 2013, decorridos pouco mais de dois anos da contratação, a Petrobras anunciou a redução do contrato: de US$ 826 milhões, para US$ 480 milhões. Como justificativa, a direção disse que o contrato precisava “refletir o portfólio atualizado de ativos e necessidades de serviços de controladas no exterior”.
ÉPOCA localizou a auditora Marise Feitoza, que trabalhou nas duas versões da auditoria. Ela disse não se lembrar da primeira e mais pesada versão. “Em nossa rotina, a gente sempre emite os primeiros comentários e envia a quem foi auditado, para que possa fazer seus comentários sobre o que foi levantado. A partir de ajustes e acertos, às vezes alguém pode apresentar novos dados para a gente, pode ter errado em alguma análise.
Todo auditor trabalha assim”, disse.
Investigações independentes da PF, do MPF e de uma cada vez mais inevitável CPI são fundamentais em casos como este e também em outros. É o caso de outro contrato fechado por Paulo Roberto, com a petroquímica Unipar, em 2008. A Petrobras se uniu à Unipar, para criar a maior empresa do setor, chamada Quattor. “A parceria entre a Petrobras e o grupo Unipar não poderia ser mais auspiciosa”, disse Paulo Roberto, ao assinar o contrato. A sociedade foi criticada dentro da Petrobras e por executivos independentes. Segundo essas críticas, a Unipar pagou muito pouco (R$ 380 milhões) para entrar na sociedade, ainda por cima tendo controle sobre ela.
No começo de 2009, a “auspiciosa” parceria rendeu propina ao esquema de Paulo Roberto e Youssef, segundo suspeita a PF. Um relatório do Conselho de Controle das Atividades Financeiras, o Coaf, obtido por ÉPOCA no inquérito da Lava Jato, revela que a Unipar depositou R$ 466 mil na conta de uma das empresas de fachada de Youssef – a mesma que recebia depósitos de propina das empreiteiras com contratos na Petrobras (leia acima). Pelo relativo baixo valor do pagamento em relação ao total do negócio, a PF suspeita que obtiveram apenas um retrato de uma relação financeira mais estável, que envolveu outros pagamentos. Agora, a PF tenta rastrear outras transações da Unipar com Youssef.
O ministro Edison Lobão afirma, por meio de sua assessoria de imprensa, que conhece o ex-gerente José Raimundo Pereira. De acordo com a nota, Pereira chegou ao cargo de gerente executivo de Marketing e Comercialização “por decisão da direção da empresa” e “contou com o apoio”. Procurado, Pereira não retornou os recados deixados por ÉPOCA. O empresário Frank Geyer e a Unipar informaram, por intermédio da assessoria de imprensa, que não se manifestariam. A Petrobras não respondeu até o fechamento desta edição. ÉPOCA não conseguiu localizar João Vaccari e o senador Romero Jucá. No ano passado, por meio da assessoria do PT, Vaccari afirmou não ter sido responsável pela tesouraria da campanha da presidente Dilma Rousseff em 2010 e que as doações recebidas foram todas legais. Jucá negou ter conversado com João Augusto ou ter barganhado o contrato da Odebrecht pelo fim da CPI da Petrobras, em 2009.
Em nota, a Odebrecht afirma: “A Odebrecht nega veementemente a existência de qualquer irregularidade nos contratos firmados com a Petrobras, conquistados legitimamente por meio de concorrências públicas. Esclareça-se que a redução no valor do mencionado contrato para a execução de serviços em instalações da Petrobras fora do Brasil foi única e exclusivamente consequência da diminuição do escopo deste contrato. Em decorrência do plano de desinvestimentos da Petrobras no exterior, a prestação dos serviços elencados no contrato, originalmente prevista para ocorrer em nove países, foi reduzida para quatro. A Odebrecht desconhece questionamentos feitos em auditoria interna da Petrobras e as conclusões dessa mesma auditoria. A empresa está à disposição de qualquer órgão de fiscalização para fornecer informações sobre o mencionado contrato, cujas obras previstas já foram concluídas e entregues.”
Na Petrobras, as canetas sempre se movem na direção certa. Após pagar pouco para virar sócia da Petrobras, a Unipar ganhou muito para sair da sociedade. Em 2010, a Petrobras uniu os ativos dela aos de uma outra empresa para formar uma petroquímica ainda maior, a Braskem. Essa outra empresa era a Odebrecht.
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